Autora de 'Um lugar ao Sol': 'Mostrar a mulher se masturbando é necessário'
Enquanto uma mulher de 56 anos, a carioca Licia Manzo lamenta ao revelar que não pôde compartilhar a experiência da menopausa com sua mãe, morta há 5. Mas, no papel de mãe, por exemplo, pode celebrar a delícia de explicar para a filha, hoje com 23, a lidar com a menstruação. E foi essa bagagem carregada de vivências ainda consideradas tabus no universo feminino que despertou na autora de "Sete vidas" (2015) e "A vida da gente" (2011) a necessidade de levar para a novela das nove, "Um lugar ao Sol" — sua primeira do horário nobre da Globo —, discussões tão profundas como masturbação e não-maternidade.
"Tenho muito lugar de fala. Todos esses temas, desde a menstruação da menina [enteada da personagem da atriz Andréia Horta], atravessaram a minha vida ou atravessam no momento. Nada mais natural e orgânico do que dar conta deles na ficção", ela se orgulha.
Apesar de toda a trama estar gravada, Licia conversa com Universa por telefone depois de mais uma reunião diária com o diretor artístico de sua obra, Maurício Farias: por causa do aumento de casos da variante Ômicron no Brasil, a estreia do remake de "Pantanal" foi adiada (a previsão era em 14 de março), e o folhetim das nove será esticado por mais duas semanas.
"Como a gente tem capítulos extensos, de cinco blocos, eu e Maurício temos trabalhado todas as tardes na edição. Temos ganchos muito bons no meio da novela, então dá para mudar as cenas de lugar", Licia descreve.
Entre esses ganchos, a atriz que aos 30 anos trocou o teatro para investir no carreira de escritora e foi reprovada na Oficina de Autores da Globo na primeira tentativa leva para a mesa do jantar discussões urgentes como gordofobia, racismo, violência doméstica e estupro de vulnerável. Temas que provocam tanto desconforto a ponto de levar internautas a acreditar que são irrelevantes.
"É muita militância desnecessária e chata. Ninguém aguenta ficar perto de gente assim por muito tempo", escreveu uma usuária do Twitter sobre a trama de Nicole. Nela, a personagem interpretada por Ana Baird tem sérios problemas de aceitação por causa do corpo gordo. Licia rebate:
"Se eu fizer uma gorda que consegue trabalho e namorado fácil, e está muito feliz e empoderada, talvez seja uma obra futurista, porque no momento não é o que a gente vive."
Mas o que causou furor mesmo foi a cena em que a Rebeca de Andréa Beltrão se masturba após o marido rejeitá-la. E é exatamente por causa de reações negativas a tramas como essa que Licia vê urgência em usar o espaço nobre da TV para lembrar que falar de sexualidade e respeitar as escolhas do outro poderiam reduzir significativamente casos de violência contra a mulher e promover a igualdade de gênero. A seguir, os melhores trechos da conversa.
UNIVERSA: Talvez 'Um Lugar ao Sol' seja uma das poucas novelas que trouxeram temas femininos tão profundos, como a mulher madura com um namorado mais novo [Bárbara e Felipe], a perda gestacional [Ilana], o relacionamento abusivo [Stephany], a adolescente que menstruou pela primeira vez [Marie]. Quais as suas inspirações para debater esses temas?
LICIA MANZO: Isso é indissociável de quem eu sou, uma autora mulher de 56 anos, mãe, inserida na contemporaneidade. Eu vivo tudo isso, então realmente tenho um mega lugar de fala. Todos esses temas, desde a menstruação da menina, que é algo que vivi com a minha filha, atravessaram a minha vida ou atravessam no momento. Nada mais natural e orgânico para mim do que dar conta deles na ficção.
É provável que a cena mais comentada até aqui tenha sido a da Rebeca [Andréa Beltrão] se masturbando na cama. Muitas pessoas elogiaram, mas tantas outras acharam pesada, desnecessária, pornográfica para o horário nobre da Globo. O que essas reações te revelaram?Primeiro, me chama a atenção a palavra "desnecessária". Ela me revela que é necessária, porque se ainda há tabu com uma cena tão sutil como a de uma mulher deslizando a mão por dentro do lençol, enquanto mil outras de teor erótico e com voltagem muito maior são mostradas na televisão muitas vezes, sem que cause espanto, é porque precisamos falar sobre isso.
Chegou a hesitar em escrevê-la justamente porque sabia que uma cena dessa, no horário nobre, causaria desconforto?
Não. Me pareceu orgânico dentro da trilha da personagem. Eu não coloquei aquilo ali para causar nada. Só acho que uma mulher de 50 e tantos anos, num casamento tão disfuncional quanto o da Rebeca, falido, e que hesita na hora de se separar por conta do papel que a sociedade dá a essa mulher é perfeitamente compreensível que queira se satisfazer sozinha. Dramaticamente acho a cena pertinente e faz parte.
A personagem da Andréa Beltrão levanta uma questão importante que é o fato de virem na mulher de 50 anos, na menopausa, uma pessoa sem desejos e que não transa. Você, que é uma mulher de 56, viveu isso, escutou algum desaforo nesse sentido?
Não escuto nenhum tipo de desaforo. É algo tácito que está estabelecido na sociedade, uma herança cultural, social, antiga, em um momento em que as mulheres estão chegando aos 80 com todas as potências possíveis. E é a própria mulher de 50 anos, muitas vezes, quem se coloca nesse papel de não se achar atraente. Ela compra o discurso do outro. Claro que envelhecer sempre traz algum prejuízo. Talvez não haja o vigor de antes, mas acho que os prós que vêm com a idade são gigantescos. Para mim, há muito mais prós do que contra, mas cada um faz sua contabilidade
É preciso que as mulheres se empoderem e entendam que nem tudo é invalidado pelas rugas, pelos cabelos brancos. A mulher é muito mais que isso. Inclusive, em termos de capacidade, não só profissionalmente falando, mas como mulher, venho colhendo frutos das minhas horas de voo.
Licia Manzo
Você sempre se permitiu falar abertamente sobre esses temas?
Acho uma pergunta sensível porque, por exemplo, as mudanças no corpo da mulher com a menopausa, na sexualidade, não são assuntos conversados livremente entre as mulheres. Nas minhas rodas de amigas, por exemplo, eles são falados a sete véus. Acho que há sempre uma mulher fingindo para si e para o companheiro que nada mudou. É claro que mudou, e quanto mais conversado, melhor. Quanto menos impedimento a gente tiver sobre o assunto, melhor. Então, acho que a ficção, muitas vezes, me permite ir em assuntos ou conversas que eventualmente não tenho um trânsito tão livre na vida. É uma forma de liberdade trazer assuntos como esses, discutir e problematizar.
Eu perdi minha mãe há cinco anos e entrei na menopausa depois. Lamento muito não ter conversado com ela sobre isso.
Você já tinha tentado levar essas questões para outras novelas e não foi aceita, viu uma resistência maior?
Nunca sofri nenhum tipo de resistência ou censura, e se eu estou falando sobre isso agora é porque talvez eu tenha essa idade e comecei a vivenciar muitas questões. Achei que tinha ali uma experiência para compartilhar.
Além da importância de falar sobre esses temas, o público cada vez mais anseia por diversidade no elenco e está atento a quem levanta essas discussões. Mas ainda vemos poucos negros e poucas pessoas consideradas fora do padrão na TV. Enquanto autora, você faz recomendações nesse sentido?
Sim. Acho que todo autor e diretor pode pautar quantos personagens quiser, dentro de qualquer gênero ou raça. Nesse sentido, acho que "Um lugar ao Sol" aborda muito o racismo. Temos o Ravi [Juan Paiva], teve a Janine [Indira Nascimento], o Luan [Miguel Schmidt], e agora entra a Georgina Castro [Thaiane], que viverá uma neta não conhecida da personagem da Maria Severo [Noca]. Então, temos vários espaços dentro da trama onde esse assunto é abordado. Espero que nas outras obras eu possa trazer mais para o primeiro plano, porque é apenas o mundo real.
Mas ainda sim há poucos atores negros no elenco. Qual a sua percepção sobre isso?
Não acho. A novela, além do relacionamento do Christian (Cauã Reymond) com a Lara (Andréia Horta) e com a Bárbara (Alinne Moraes), é sobre a relação entre dois amigos, e um deles é um ator negro que traz essa questão muito forte. Acho que por meio da personagem da Aninha [Ana Beatriz Nogueira, a Elenice, uma mulher que está sendo processada por injúria racial] trouxemos esse assunto muito forte. E acontecerá mais com o filho da personagem da Fernanda [de Freitas, a Érica]. E vem a personagem da Geórgia com muita força. Acredito que o assunto esteja bem representado e presente na trama.
De maneira geral, quando há, por exemplo, uma personagem trans ou gorda em uma trama, reclama-se que ela é posta em um núcleo que só fala de gordofobia, ou transfobia. Ou seja: não se normaliza aquele corpo. É o caso, por exemplo, da trama da Nicole [Ana Baird]. Como você enxerga essas críticas?
Com todo respeito à opinião do público, o lugar de quem escreve é diferente do de quem assiste. Muitos reclamam que a personagem gorda sofre por ser gorda. Claro! Se eu fizer uma personagem gorda empoderada, sem problemas com isso, eu não tenho curva dramática. Se o problema já estivesse resolvido na nossa sociedade, eu não estaria abordando. Mas a gordofobia existe dessa maneira cruel e horrorosa que está sendo vista na trama, onde ela perde trabalho porque é gorda, e contrata uma coach de emagrecimento. Tudo isso se chama gordofobia. É desagradável dizer, mas para poder levar a personagem para um lugar de libertação, preciso que ela esteja aprisionada em padrões impostos pela sociedade. É preciso que o público compreenda isso.
Se eu fizer uma gorda que consegue trabalho e namorado fácil, e está feliz e empoderada, talvez seja uma obra futurista, porque no momento não é o que a gente vive. Estamos em um momento de aceitação, de corpos livres, mas é um momento em processo, e é esse processo que me interessa. Se a Nicole não tivesse problema nenhum não seria uma obra fiel à realidade.
Outra personagem muito criticada é a Joy [Lara Tremouroux], que passa por todos os tipos de abuso, mas parece que o mais importante é discutir a cena em que a atriz aparece com pelos nas axilas. O que você pensa sobre isso?
Sim. É uma personagem muito batida nas redes sociais. Mas queria dizer que é uma das que mais me enternecem na trama, eu adoro. Não poderia esperar dela outra coisa sendo fruto do lugar onde foi criada, por uma mãe que provavelmente foi criada nas mesmas condições, uma menina extremamente desvalida. Convido as pessoas que vejam documentários sobre gravidez na adolescência em comunidade. Não é um conto de fadas onde a mulher fica feliz com um bebê. Para você estar feliz com um bebê, você precisa estar constituída como mulher, e a Joy é um retrato da precariedade completa.
Mas acho que da sua maneira errática ela tem um discurso feminista, desde o momento em que diz não querer ser mãe. Como uma personagem, para quem a delicadeza não foi apresentada, pode ser sutil e amorosa?
Ela está muito longe de ser uma vilã, mas acho que a crítica é porque é uma mulher, e qualquer discurso que questione o sacrossanto lugar da maternidade, ou a maternidade como vocação inata da mulher, ela é apedrejada. Fosse um homem achariam natural.
E a atriz não está ali para fazer caras e bocas, a bonitinha. Ela está entregue. Talvez, se estivesse mais pintadinha e depilada, as pessoas tolerassem melhor.
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