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'Fada negra existe?': memórias sobre Lélia Gonzalez, que faria 87 anos hoje

Lélia Gonzalez, uma das maiores intelectuais brasileiras, em foto de 1988 - Divulgação/Projeto Lélia Gonzalez Vive
Lélia Gonzalez, uma das maiores intelectuais brasileiras, em foto de 1988 Imagem: Divulgação/Projeto Lélia Gonzalez Vive

Nathália Geraldo

De Universa

01/02/2022 04h00Atualizada em 01/02/2022 16h14

Se viva, Lélia Gonzalez, uma das maiores intelectuais do Brasil e pensadora referência em temas de raça e gênero, completaria 87 anos nesta terça-feira (1º). Sobrinha da pensadora mineira, Eliane de Almeida, a yalorixá Lili de Oyá, hoje com 73 anos, é uma das partes da família de Lélia à frente do projeto Lélia Gonzalez Vive, que promove ações para manter e divulgar o legado da autora, que acumulou formações em antropologia, história e filosofia e faleceu em 1994, vítima de um infarto.

"Carrego até hoje a lembrança de quando minha mãe fez um vestido do baile de formatura para Lélia, que terminava o científico. Era da cor azul. Quando a vi, perguntei: 'Mamãe, fada negra existe?'", recorda Lili. Como muitas mulheres negras, ela se inspira, revisita e admira o passado da tia. "Morei com ela ao final da vida, e estive em muitas reuniões que ela fazia com aquela mulherada para falar as coisas que não eram da academia. Ela falava o 'pretuguês', como dizia".

O que a ativista, que fez parte do grupo de fundadores do Movimento Negro Unificado - MNU, dizia sobre gênero, raça, classe e até mesmo como se vestia passavam uma mensagem.

Analisar as identidades brasileiras e denunciar os estereótipos e como o racismo se entranhava na sociedade era sua especialidade. Tudo feito com linguagem fácil e, por vezes, debochada.

"Ela queria atingir a população sobre a qual ela estava falando; ou seja, de uma pessoa que se reconhecia negra e que fala para pessoas negras", comenta a pesquisadora em história, gênero e raça na Universidade Federal do ABC (UFABC), Isabela Sena. "Em seus textos, há várias camadas, de teoria cultural, história do Brasil, psicanálise, marxismo. Ela usava tudo para explicar as relações sociais do país, e em um período em que terminava a ditadura".

Estudada e com uma vida à frente do seu tempo

benedita - Divulgação/Projeto Lélia Gonzalez Vive - Divulgação/Projeto Lélia Gonzalez Vive
Ao lado da deputada Benedita da Silva, na inauguração do Memorial Goreé Almadies em Dacar, Senegal, em 1986
Imagem: Divulgação/Projeto Lélia Gonzalez Vive

Uma das vozes mais conhecidas dos movimentos feministas e negros, Lélia Gonzalez estava "à frente do seu tempo", avalia Lili.

"Lélia agia, falava de forma diferente. Até porque foi a única que estudou efetivamente na família; minha mãe, por exemplo, só foi até o ensino primário. Então, ela ia às coisas profundamente", diz. "Até mesmo na moda, ela fazia umas misturas, de estampas, o que era maravilhoso para mim. Fico pensando que ela era corajosa, porque vejo mulheres negras usando hoje o que ela já colocava há 30 anos".

Para a neta da pensadora, Melina Lima, que também faz parte do projeto Lélia Gonzalez Vive, o estilo que ela seguia não era meramente uma escolha de moda.

"Quando minha avó tomou consciência da importância da valorização da cultura negra, passou a se aproximar da estética afro. Buscou suas raízes, parou de usar perucas, virou símbolo de luta e resistência, num momento em que a estética do branco, europeu era visto como bonita e superior. Isso foi no fim dos anos 60, início dos 70. Ela fez viagens para África depois, que só reforçaram o orgulho dessa cultura, que é nossa também".

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A escritora mineira em foto de 1977
Imagem: Divulgação

No campo intelectual, a ousadia e os novos caminhos que se propunha a traçar fez de Lélia uma pensadora pioneira na articulação de questões de gênero e raça. "Ao apontar o racismo, o sexismo e como eles se interligam, a pensadora se torna pioneira na visão da interseccionalidade. Por isso, quando, nós, mulheres negras, lemos Lélia conseguimos ver que ela coloca em palavras o que a gente sente. E, às vezes, o que a gente fala e não tem ninguém para ouvir", afirma Isabela, que também faz parte do Bibliopreta, projeto de divulgação do conhecimento negro.

O legado de uma aquariana

lelia - Cezar Louceiro / Reprodução - Cezar Louceiro / Reprodução
Militante, filósofa e feminista, além de parte do grupo de fundadores do Movimento Negro Unificado - MNU, Lélia deixou legado
Imagem: Cezar Louceiro / Reprodução

"Tudo o que ela me deixou foi um legado de coragem, fé e força. Acabei indo para a espiritualidade porque ela queria ter vivido isso. Uma vez, ela até falou para o pai de santo que cuidava dela e de mim para que ele estivesse comigo. Então, segui esse caminho", conta Lili.

Dentro e fora de terreiros, da Academia, dos movimentos sociais, Lélia se tornou referência para quem se propõe a repensar as estruturas sociais e o lugar a que a mulher negra é submetida, comenta Isabela.

"Em sua obra, ela fala dos trabalhos que exercemos, do cuidado, do trabalho doméstico, do emocional dentro da nossa comunidade. Traz ainda as violências que não devem ser toleradas, como a da hipersexualização da mulher negra, os abusos que sofremos. Lélia bota luz nestas questões que, se não entendermos, não conseguimos resolver."

"Quando diziam que ela era muito à frente, ela respondia que aquariana era assim mesmo", resume Lili.