'Já me negaram trabalho por ser negra. Hoje, sou dona da minha empresa'
A literatura faz parte da vida da carioca Janine Rodrigues, 40, desde criança, quando escrevia cartas para sua mãe para contar algo. Adulta, usou textos literários de sua autoria no trabalho com licenciamento de empreendimentos de energia no Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis). Janine percebeu que os materiais que tinha para apresentar a comunidades quilombola, indígena e ribeirinha sobre os impactos que aquele empreendimento poderia causar eram muito técnicos e não geravam o efeito desejado. Assim, começou a criar histórias para lhes mostrar o que estava acontecendo.
"O projeto fez muito sucesso e passei a me dedicar a isso", diz. Até que, em 2015, surgiu a Piraporiando, uma edtech — empresa focada em tecnologia em educação — que cria conteúdos e experiências educacionais antirracistas, antibullying e voltadas à diversidade a partir das histórias criadas por Janine.
De lá para cá, a Piraporiando chegou a mais de cem empresas, como as multinacionais SAP, Abbott e Nivea, e a 1.200 escolas em todo o Brasil. Já são seis livros publicados e vendidos em 16 países, e o trabalho da empresa já impactou 122 mil pessoas em 22 estados do Brasil, além de Colômbia, Argentina e Chile. A perspectiva para este ano é crescer ainda mais e lançar uma plataforma de educação online e gamificada — que aplica estratégias de jogos em suas ações para aumentar o engajamento.
Exclusão por ser negra e encontro com Conceição Evaristo
Janine conta que, em sua trajetória, ela se depara não só com os desafios que toda empreendedora tem para criar uma empresa, mas também com questões de racismo e desigualdade e com acessos negados.
Ela se lembra de ouvir de uma diretora de escola que, apesar de os professores do lugar terem amado seu livro e a achado tema fantástico para uma roda de leitura com os alunos, não poderiam seguir por causa da cor de sua pele. "Se trouxermos você aqui teremos problemas com as famílias, pois você é preta", disse a diretora na época. "Infelizmente isso é comum, temos de aprender a lidar, pois não há outro jeito. Mas machuca, dói", diz Janine.
Outro episódio marcante foi o primeiro evento literário que participou como autora. "Era uma viagem e havia um grupo de autores e educadores — todos brancos —, combinando de ir almoçar. Eles marcaram um local e, quando desci, não havia mais ninguém lá. Não me esperaram, e eu fiquei sozinha. Me lembro de voltar para o quarto e chorar muito", conta.
"Mas a vida é cheia de surpresas. Nesse dia, fui almoçar sozinha e dei de cara com a Conceição Evaristo, linguista e escritora preta renomada. Ela me deu um abraço forte e trocamos algumas figurinhas sobre essa solidão da mulher negra, que é uma pauta que, ano após ano, vemos em todas as áreas", diz.
Empresa tem iniciativas para escolas e para o mundo corporativo
A Piraporiando atua em duas frentes. Para as escolas, possui um programa de educação continuada, que ocorre durante todo ano letivo e se alia ao currículo para que as temáticas da diversidade façam parte do cotidiano dos professores e dos alunos. Trata-se das Trilhas da Diversidade, programa gamificado e de formação continuada.
Já para as empresas, realiza consultorias, principalmente, para as áreas de RH, RS e Marketing. "Criamos conteúdos e experiências pautadas na valorização da diversidade de maneira que una escolas, empresas e famílias para uma ensino de qualidade", afirma Janine.
Para ela, o Brasil não dá o devido valor à educação básica, especialmente a infantil. "Existe uma ideia equivocada de que o mais importante é o ensino médio, o técnico e a graduação. Porém, a educação infantil é a base para tudo isso, pois há muita coisa que acontece nesse período que vai pautar o quanto uma pessoa vai ser um bom profissional também em relação a questões de gênero, de diversidade, de relacionamento, de empatia", explica.
Pedir apoio a outras mulheres é essencial
Para conseguir lidar com os desafios de empreender e com preconceitos pelo caminho, Janine reforça a importância da sua família. "Penso muito na minha infância. Meus pais sempre me falaram que eu poderia ser o que quisesse: atriz, médica, antropóloga, viajante do tempo. Mas, por outro lado, foram muito realistas", diz.
"Meu pai me falava sobre racismo, dizia que nosso caminho não é fácil e muitas pessoas pretas morreram para podermos chegar até aqui. Porém, ele e minha mãe sempre estariam ao meu lado", relembra. Segundo ela, a comunidade negra deve ter em mente a importância do que foi construído por seus ancestrais. "É isso que me faz continuar. Se Carolina de Jesus não desistiu, se Milton Santos não desistiu, como vou desistir? Isso nunca passou pela minha cabeça", comenta, referindo-se à escritora e ao geógrafo que são referência até hoje.
Outro conselho de Janine é buscar apoio em outras mulheres. "A sociedade, por muitos anos, nos contou uma história mentirosa de que rivalizamos e queremos puxar o tapete uma da outra. A verdade é o contrário. Conhecemos as dores de ser mulher e passamos pelas mesmas coisas, como o assédio e o preconceito", diz. Para ela, a união e o poder feminino são transformadores.
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