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Um ano e meio após espancamento de modelo: 'Ainda lido com os traumas'

A modelo trans Alice Felis teve ossos e dentes quebrados pelo agressor, em 2020 - Reprodução/Instagram
A modelo trans Alice Felis teve ossos e dentes quebrados pelo agressor, em 2020 Imagem: Reprodução/Instagram

Alice Felis em depoimento a André Aram

Colaboração para Universa

17/02/2022 04h00

Em 16 de agosto de 2020, a modelo transexual Alice Felis foi brutalmente agredida em seu apartamento em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, onde sofreu uma tentativa de latrocínio (roubo seguido de morte) motivado por transfobia. No início de 2022, o agressor Lucas Brito Marques foi condenado a nove anos de prisão. Um ano e seis meses depois, ela conta as dificuldades que enfrenta.

"Após mais de um ano passando por mesas de cirurgia, tratamentos dentários e pós-operatórios, consegui me recuperar fisicamente. O processo foi doloroso devido às intervenções cirúrgicas, não sei quantas operações foram feitas no total, mas perdi 14 dentes e precisei fazer a reconstrução do nariz, das maçãs do rosto e da mandíbula, que foram fraturados.

Alice Felis, modelo transexual espancada após tentativa da latrocínio no RJ - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Alice Felis foi espancada após tentativa da latrocínio no Rio de Janeiro
Imagem: Reprodução/Instagram

Meu queixo foi aberto ao meio, e por isso, tenho uma placa de ferro com 14 pinos nele, além de vários cortes, porque ele tentou me esfaquear. Fiquei com cicatrizes no queixo, na testa, na sobrancelha, e no pé, onde levei pontos. Sobre o psicológico, ainda não estou recuperada, preciso retomar a terapia, ainda é muito complicado. A agressão mexe muito com a nossa cabeça, me deixou insegura de todas as formas, é uma coisa que vou levar para a vida toda.

Mesmo o agressor estando preso, recebi ameaças por telefone dizendo que eu armei tudo para ganhar visibilidade, dinheiro, conseguir seguidores; tentaram até me extorquir. Mas ainda assim me sinto aliviada, não só por mim, mas também por todas as pessoas que ele poderia fazer mal.

Se ele fez comigo, poderia fazer com outras mulheres trans ou cis. Embora acredite que nunca estarei segura, fiquei feliz porque a justiça foi feita.

Foi a primeira vez que fui vítima de transfobia. Claro que antes sempre senti as pessoas me observando na rua, mas nunca a ponto de me agredir de forma verbal ou física. Fui morar em São Paulo por causa da agressão, quis sair do Rio de Janeiro pois me sentia muito vulnerável lá. Não que me sinta segura; não há segurança em lugar nenhum, nem mesmo dentro de um relacionamento.

"Sinto que ainda corro riscos"

Meu caso teve uma enorme repercussão, a agressão me deixou muito traumatizada, e esse medo vai existir sempre, principalmente no meu trabalho. Vou voltar a ser a 'Alice acompanhante', porque não tenho oportunidades no mercado de trabalho.

Ao mesmo tempo, não me sinto confortável e confiante para abrir as portas da minha casa, ter contato físico com outras pessoas. Como saber se alguém não fará uma maldade comigo?

Estou sem trabalhar como profissional do sexo desde o dia da agressão. Eu estou tentando me levantar, me reorganizar para poder deixar o Brasil, porque viver aqui hoje é muito arriscado.

Procurei algumas formas de trabalho que não fosse como acompanhante ou como criadora de conteúdo sensual, mas não consegui. Mesmo com a visibilidade do caso, não tive oportunidades de trabalho. A única porta que vai se abrir novamente para mim será como profissional do sexo.

Não tenho outras possibilidades que não sejam trabalhar com o meu corpo. Está muito difícil, porque além de ter que digerir os traumas da agressão, também preciso lidar com a rejeição das pessoas que não me dão oportunidades.

"Meu desejo hoje é deixar o país"

Quero recomeçar minha vida fora do Brasil e superar tudo isso em outro lugar, ter a minha paz e a minha segurança. Não vejo problema na prostituição, pelo contrário, me sustentei durante muito tempo com essa atividade no Rio desde o início da minha transição, há quatro anos.

Consegui muitas coisas como acompanhante, e é fato que muitas meninas trans hoje dependem do mercado do sexo para ter a sua casa, para conquistar seu espaço, para ter a sua liberdade e muita gente vê isso com preconceito, do tipo: 'Ah está fazendo isso porque quer vida fácil', E não é: só temos esse caminho, essa alternativa.

Vamos ser realistas? Se eu tivesse saído na mídia: 'A trans Alice, profissional do sexo ou puta', eu não teria tido a visibilidade e ajuda que tive. Quantas mulheres trans foram agredidas, espancadas e até vieram a óbito, que eram acompanhantes, e não tiveram apoio? Fui ajudada por muitas pessoas, como Preta Gil, Marília Mendonça, MC Mirella, pelos médicos, mas fui identificada (na mídia) como 'modelo'.

É um absurdo a expectativa de vida das trans no Brasil ser de 35 anos. Nós somos pessoas como outras quaisquer; é triste demais saber que muitas são agredidas e mortas como se fossem aberrações A todo momento nos sentimos inseguras de sair de casa: não sabemos o que nos espera lá fora.

As portas precisam ser abertas para nós mulheres e homens trans, para não dependermos apenas da prostituição para sobreviver, para que as pessoas possam nos olhar de outro jeito.

Acho que essa é a melhor forma de combatermos a transfobia. Todos os dias eu oro para que essa realidade mude, e que deixemos de ser estatística".

Alice Felis, 28 anos, é modelo e transexual