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'Viajei de motorhome com minha família por três anos e visitamos 27 países'

Família Figueiredo Rodrigues passou três anos viajando de motorhome - arquivo pessoal
Família Figueiredo Rodrigues passou três anos viajando de motorhome Imagem: arquivo pessoal

Manuela Figueiredo Rodrigues em depoimento a Rafaela Polo

Colaboração para Universa

19/02/2022 04h00Atualizada em 20/02/2022 11h08

Eu, meu marido, Rodrigo, minhas filhas, Maria e Nina, e nosso cachorro Assis caímos na estrada em dezembro de 2018, mas a história de como ficaríamos viajando o mundo por três anos começou muito antes disso. Eu e meu marido somos fissurados em viajar. Até na hora de comprar roupas a gente pensa: quantas passagens compraríamos com esse dinheiro?

Quando minhas filhas tinham 10 e 14 anos, pensamos que estávamos no momento limite de fazer uma viagem de motorhome passando por todos os continentes. Muito em breve, elas não iam mais querer ficar o tempo todo com a gente, então tínhamos que aproveitar. Além disso, entendíamos que a viagem oferecia a elas uma educação muito diferenciada, muito além do que a melhor escola que poderíamos matriculá-las. Elas veriam outras culturas, fariam trabalhos voluntários e conheceriam o mundo com os próprios olhos, tirando suas conclusões.

Jornada começou nos Estados Unidos. Primeiro perrengue foi no Panamá

Família começou a jornada pelos Estados Unidos e percorreu parte da América Latina. Na foto, eles estão em Belize. - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Família começou a jornada pelos Estados Unidos e percorreu toda América Central. Na foto, eles estão em Belize.
Imagem: arquivo pessoal

Na época, eu tinha 40 anos. Já trabalhava remotamente em um escritório de publicidade, que estava indo muito bem, e meu marido, como arquiteto, poderia fazer projetos da estrada também. Bateu aquela vontade então de viver o que a vida pede e ir atrás de um sonho. Nossas economias eram o suficiente para dar entrada em um apartamento e com a possibilidade de trabalhar na estrada, fomos.

Começamos o planejamento dentro de casa. Sentamos com as meninas na mesa de jantar e pedimos para que elas desenhassem um mapa do mundo, marcando os países que queríamos conhecer. Definimos que ficaríamos na estrada por três anos e a meta era visitar 36 países, ficando pelo menos um mês em cada um.

Claro que não precisaríamos seguir à risca, mas era algo para nos dar um norte. Mas a chegada da pandemia, quando já estávamos na estrada há pouco mais de um ano, pediu uma adaptação de planos. Conhecemos, no fim das contas, 27 países: Estados Unidos, México, Belize, Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Espanha, Portugal, França, Itália, Croácia, Montenegro, Sérvia, Bulgária, Bósnia, Eslovênia, Áustria, Alemanha, Bélgica, Holanda, Inglaterra, Escócia, País de Gales, Grécia e Turquia.

Começamos por Miami. Minha irmã mora lá então tínhamos um lugar para ficar enquanto resolvíamos o necessário. Sem contar que o motorhome lá é muito mais barato de se comprar. No Estados Unidos, percorremos a costa leste e o centro. A partir dali, descemos para o México e passamos por toda América Central. De lá, eu e as meninas fomos de avião para Europa enquanto o meu marido voltou para os Estados Unidos para vender o nosso motorhome. Tomamos um balão no Panamá e a pessoa que disse que ia comprar acabou desistindo.

No Panamá, passei um perrengue bem forte quando fiquei sozinha com as crianças. Dois amigos das meninas vieram do Brasil para passar um tempo com a gente. Então estávamos eu, quatro crianças e um cachorro. Atravessei o Panamá todo sozinha assim.

Um dia, peguei uma estrada cheia de curvas e muito esburacada. Foi ficando escuro e eu não achava um lugar para parar. A situação estava perigosa. Estávamos na estrada que era conhecida por ter o maior fluxo de tráfico de drogas. Parei em um hostel, no meio do nada. Era bem rústico, estava cheio de ratos, tinha ratoeiras e precisamos dormir praticamente no chão.

Pandemia mudou os planos

Como falei, nós queríamos passar por todos os continentes, mas a pandemia não permitiu. Quando as fronteiras começaram a fechar, nós estávamos na França, na Normandia. Naquele começo, a gente não sabia muito bem o que estava acontecendo e até os campings estavam começando a fechar.

Chegamos a uma fazenda, onde havia um espaço para estacionar vans, e pedimos por favor para parar ali. Estávamos bem no meio do nada e motorhome nas metrópoles em época de confinamento não combina. A dona do lugar se chamava Sophia e estava grávida. Ela foi muito legal com a gente.

Moramos na fazendo por quatro meses e nos aproximamos muito e nos tornamos amigas. Tanto que até voltamos para visitar quando o bebê nasceu. A Sophia tinha um haras na fazenda para treinamento de crianças e era fisioterapeuta. Foi muito bom para nossas filhas conviverem com os cavalos. A minha filha mais nova não dominava o inglês ainda, e a Sophia também não. Elas aprenderam juntas e no fim de quatro meses estavam craques no outro idioma.

Família Figueiredo Rodrigues passou por 27 países, 3 anos viajando de motorhome - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Por causa da pandemia e das fronteiras fechadas, família ficou 4 meses parada no Vilarejo Gerberoy, na região da Normandia, na França.
Imagem: arquivo pessoal

Saindo da França, fomos em direção a Alemanha, mas o carro deu problema e precisamos trocar uma peça. Neste momento, a Europa estava deslanchando depois do primeiro confinamento.

O que fez a diferença neste momento foram uns amigos alemães que fizemos meses antes, quando passamos por Honduras. Estávamos próximo da fronteira e começou uma manifestação bem grande e com muito quebra-pau. As fronteiras da América Central são difíceis, demoradas e algumas perigosas. Estávamos com nosso carro estacionado ao lado esse e um casal que era muito legal. Quando foi nossa hora de cruzar a fronteira, precisávamos pagar 50 dólares. Não tínhamos dinheiro e não aceitavam cartão. Então, pedimos ajuda. Se não, precisaríamos voltar na estrada à noite e passar no meio da briga de novo. Eles pagaram nossas taxas.

Na Alemanha, eles também nos apoiaram. Nos deram uma casa e um carro para usarmos enquanto o nosso motorhome estava na oficina. Sempre que passamos por algumas roubadas, diversas pessoas nos ajudaram. Elas querem ajudar, de maneira geral, e não te fazer mal.

Continuamos na viagem e fomos para a Bósnia. Em Sarajevo, por exemplo, ainda tem muitos resquícios de guerra. Não aprendemos sobre isso e é parte da história recente. As meninas puderam viver esse momento na pele, conhecendo pessoas, se relacionando com outros países e entendendo como suas histórias interconectam.

Família Figueiredo Rodrigues passou por 27 países, 3 anos viajando de motorhome - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Família Figueiredo Rodrigues em Monte Nemrut, na Turquia
Imagem: arquivo pessoal

Surpresas no caminho

Também tínhamos que ficar atentos aos vistos. A cada três meses, tínhamos que sair dos países que o exigiram, ficar três naqueles que não precisava, para depois voltar. Era como jogar War na vida real. Transitamos bastante durante a pandemia e achávamos que nem conseguiríamos, mas rolou. No final, passamos nervoso. Quando estávamos na Turquia, começaram a negar o nosso passaporte. Na Grécia fomos negados duas vezes.

Precisávamos mudar a rota e nos adequar ao que a viagem nos oferecia. Foi quando eu virei a chave e parei de querer controlar a viagem e me entreguei para ver o que dava certo. Quando tentamos entrar na Escócia, por exemplo, quase não conseguimos. A mulher da fronteira nos deixou passar porque gostou de nossa história. Lá, ficamos em uma ilha chamada Sky e pudemos ver uma natureza maravilhosa.

Nem tínhamos essa expectativa e fomos surpreendidos. Parecia uma cena do canal National Geografic: as coisas eram de um verde diferenciado, parecia um lugar que nenhum homem pisou antes. Passamos por uma ventania lá que o carro balançava, chegou a levantar os pneus. Ficamos morrendo de medo. Foi uma roubada, mas foi incrível. Dava para sentir a força da natureza, que nos fazia parecer tão pequenos? Foi uma experiência linda.

De volta pra casa

Chegamos no Brasil dia 25 de janeiro de 2022, faz bem pouco tempo. Nossa casa estava alugada, o que nos gerou uma renda extra. As meninas voltaram para a escola e temos muitas tarefas para fazer. Estamos nos organizando. É diferente.

Na estrada, precisávamos pensar onde jogaríamos o esgoto e onde pegaríamos água, coisas que estão em nossas mãos dentro de casa. Nós falávamos com as pessoas, mas às vezes, ninguém sabia onde estávamos. Era uma sensação libertadora. Nesse momento, estamos vivendo a euforia de voltar.

A vida no motorhome cansa, mas estamos em um lutinho, sabe? Chegou ao final e concordamos que já tinha dado nosso tempo. Claro que passamos em momentos difíceis de convivência, mas a riqueza que vivemos sempre nos fez superar os problemas. A cada ano avaliávamos se continuaríamos ou não. A resposta sempre foi sim. A experiência foi muito rica para conhecimento interno. Quase um retiro espiritual em grupo. Mas faríamos tudo de novo." Manuela Figueiredo Rodrigues, 43 anos, publicitária, hoje mora em Campinas (SP)