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Cenas de sexo têm limites: quem é a 1ª coordenadora de intimidade do Brasil

Série brasileira "LOV3", da Prime Video, tem coordenadora de intimidade para cenas de sexo - Divulgação/ Amazon
Série brasileira "LOV3", da Prime Video, tem coordenadora de intimidade para cenas de sexo Imagem: Divulgação/ Amazon

Mariana Toledo

Colaboração para Universa

20/02/2022 04h00

Nesta sexta-feira (18), estreou no Prime Video a série Original Amazon "LOV3", na história, os gêmeos Sofia (Bella Camero) e Beto (João Oliveira) e a irmã mais velha Ana (Elen Clarice) têm poucas coisas em comum, mas entre elas o fato de que se recusam a experimentar o amor e o sexo de maneira tradicional. A série traz de maneira inédita ao Brasil o papel da "coordenadora de intimidade". A profissional, que vem ganhando destaque nos sets de filmagem norte-americanos, é encarregada de supervisionar as cenas de nudez e sexo nas filmagens para assegurar a segurança física e emocional dos atores.

Aqui, a função ficou a cargo de Maria Silvia Siqueira Campos, que atua como preparadora de elenco há 20 anos. "Cenas de intimidade devem ser cuidadas, respeitadas, acordadas e feitas com tempo suficiente para um bom resultado final. Um desconforto em cena, por menor que seja, é facilmente capturado pela câmera e isso pode ser percebido no resultado final", conta em entrevista a Universa.

Coordenadora de intimidade no set: o que faz essa profissional?

Criada por Felipe Braga e Rita Moraes, que também assinam a produção, “LOV3” fala relacionamento poliamoroso, a afetividade no mundo LGBTQIA+ e a maternidade tóxica.  - Reprodução / Internet - Reprodução / Internet
Criada por Felipe Braga e Rita Moraes, que também assinam a produção, “LOV3” fala relacionamento poliamoroso, a afetividade no mundo LGBTQIA+ e a maternidade tóxica.
Imagem: Reprodução / Internet

"LOV3" inaugura esse cuidado nos sets do país trazendo mais segurança e conforto para os atores, o que se traduz em um entrosamento melhor, além de mais química e naturalidade nas atuações. Além das cenas de sexo, ela também atua em cenas que são potenciais gatilhos e exigem muito do ator, como cenas de violência, por exemplo.

Em Hollywood, a função ganhou mais força após o movimento #metoo, que denunciou inúmeros casos de assédio e abuso sexual na indústria cinematográfica. A partir dali, as produtoras, canais de TV e de streaming têm cuidado para que, em cenas de sexo, os atores e diretores tenham limites mais claros.

Rita Moraes, criadora e produtora da série, revela que a ideia veio da própria Amazon, que pediu que a profissional fosse contratada e ajudou a produtora na busca pelo nome ideal. "A ideia de ter essa pessoa presente sempre foi algo que nos tocou, vemos muito essa prática nos Estados Unidos. Minha irmã [a atriz Alice Braga] já trabalhou em muitas obras onde foi exposta em determinado momento", conta.

"Como atriz, me senti mais protegida", afirma Bella Camero, que interpreta Sofia na série. "É ótimo estar em um ambiente que tem esse cuidado. Acho que é muito sutil entender o limite de até onde eu disponibilizo meu corpo, minha voz e meus movimentos, isto é, o quanto eu estou dando mais do que gostaria e, mesmo assim, dizendo que está tudo bem", fala.

O trabalho da coordenadora de intimidade vai além de garantir a segurança do elenco em cenas de nudez e sexo. "É uma pessoa sensível, que escuta, faz esse trabalho de ouvir todo mundo o tempo inteiro. Existem sutilezas nos relacionamentos humanos dentro da panela de pressão que é um set de filmagem", diz Rita Moraes. "Intimidade fala de cena de sexo e nudez, claro, mas imagina, por exemplo, para um ator que acabou de perder o pai, fazer uma cena em que o pai está morrendo. Ou ter que gravar diversas cenas num dia em que a pessoa simplesmente não está bem", completa.

Trabalho começa bem antes das gravações

Maria Silvia Siqueira Campos explica que seu trabalho começa bem antes das gravações, durante o estudo do roteiro e ensaios tudo é discutido. Além disso, ela diz que sempre conversa com cada pessoa envolvida antes de começar a pensar na cena para entender os limites, ansiedades e dúvidas de cada pessoa. "Saber dos limites é fundamental e não existe negociação a respeito disso", afirma.

Não existe razão para uma pessoa, em hipótese alguma, passar por qualquer tipo de abuso ou situação constrangedora. A minha função é fazer com que a cena aconteça da melhor forma possível - e isso não significa apenas um resultado incrível e, sim, um processo respeitoso" Maria Silvia Siqueira Campos, coordenadora de intimidade

Na hora de filmar cenas mais sensíveis, ela organiza junto com o assistente de direção, produção e equipe para que o número de pessoas trabalhando no set seja o mais reduzido possível. "Se um ator diz que não quer que algo seja mostrado, isso vai ser respeitado. Fizemos muitos ensaios, praticamente uma coreografia, para chegar em desenhos de cena confortáveis para todos. Seguimos tudo isso à risca e posso garantir que ganhamos tempo de filmagem, com nenhuma situação de constrangimento nem desconforto para atores e diretores", afirma.

Essa troca com sensibilidade pode fazer com que as cenas possam mudar na hora da gravação, mesmo depois de tudo acordado em roteiro e ensaios. "Não é porque o ator leu o roteiro e topou gravar aquela cena que, na hora, tudo vai fluir bem. Ao longo do processo, tudo tem que ser checado diversas vezes. Especialmente quando estamos falando de um artista mais jovem. Às vezes ele não tem essa força de dizer 'não consigo' para o diretor. Aí fala para a coordenadora de intimidade, que faz essa ponte, conduz essa conversa e faz a gente repensar. Para os mais jovens, isso é um alento", completa.

O trabalho da coordenadora não fica só na questão da nudez propriamente dita. " Com a coordenadora de intimidade, a gente teve muita troca, e ela levou com sutileza todas as nossas dificuldades e questões", fala Bella. "Às vezes estou fazendo uma cena em que é necessário gemer alto e eu não consigo. O limite entre a vida e a arte é sutil. Afinal, todos somos pessoas com traumas e bagagens e ninguém precisa passar por cima disso. Acho que a vida é maior do que a arte e ninguém precisa extrapolar limites físicos e emocionais para entregar um trabalho."

Um passo concreto contra episódios de assédio nos bastidores

Não são poucas as histórias de assédio no mundo do audiovisual: abusos por parte de diretores, preparadores de elenco e até colegas de cena infelizmente são bastante comuns. A contratação de uma coordenadora de intimidade é uma das primeiras atitudes realmente concretas do cinema nacional para impedir isso - ou, pelo menos, tornar essas situações cada vez mais raras.

Rita Moraes, criadora e produtora da série LoV3 revela que a ideia veio da própria Amazon - divulgação - divulgação
Rita Moraes, criadora e produtora da série LoV3 revela que a ideia veio da própria Amazon
Imagem: divulgação

"A presença da coordenadora de intimidade pode, sim, diminuir os casos de assédio, porque qualquer coisinha errada rapidamente é dita. É uma profissional sensível - uma expressão corporal diferente já chama a atenção dela", opina Rita. "E não estamos falando só de assédios extremos. Às vezes, uma passadinha no tom, uma brincadeira, um comentário: tudo isso já é barrado logo de cara. É nesse lugar em que podemos começar a mudar o mercado", completa.

A ideia é promover um espaço seguro de trabalho onde ela possa exercer com o talento e profissionalismo dela o que precisa ser feito sem, no entanto, se colocar em risco." Rita Moraes, criadora e produtora de "LOV3"

E Bella conclui: "É melhor estarmos nesse lugar que talvez possa ser visto como exagero do que cair no abandono. Como desde nova trabalho com isso, tem situações que só fui perceber muito tempo depois. E tenho certeza que isso acontece muito, isto é, da atriz se arrepender de como agiu porque na época não sabia como se colocar. A coordenadora de intimidade evita essas situações principalmente por lidar com coisas subjetivas. Óbvio que não aniquila situações de assédio, mas é um grande passo para que essas histórias sejam cada vez mais raras".