'Víbora e feminazi': mulheres relatam ataques durante processos na Justiça
"Víbora", "feminazi", "louca" e "mentirosa". Essas foram ofensas que a advogada paulistana Marina Ruzzi, especialista em gênero, já ouviu no exercício de sua profissão, seja em audiências ou em bastidores do andamento de um processo.
Em apenas um final de semana deste ano, por exemplo, o escritório dela recebeu 40 e-mails do ex-marido de uma cliente, com várias ofensas direcionadas a Ruzzi. "Ele me chamou de víbora, disse que eu menti no processo e que, agora, com certeza eu inventaria uma mentira para prejudicá-lo. E também disse que eu era louca e mau-caráter", conta.
A advogada também lembra que foi chamada de "disseminadora da ideologia de gênero" no andamento de uma ação civil em 2019. "Isso é uma forma de intimidação e afeta nossas clientes porque o intuito é que fiquemos mais atemorizadas, desconfortáveis em atuar nessas demandas", analisa.
A advogada afirma que xingamentos são mais comuns fora do ambiente dos tribunais. "Normalmente, existe um decoro na audiência que as partes não usam palavras de baixo calão. É raro. Geralmente, esse tipo de ofensa aparece nas petições."
Mas, segundo ela, ofensas e desqualificações de advogadas ocorrem com frequência em processos na área cível, principalmente em casos de direito da família, como ações pela guarda de filhos e que envolvam alienação parental. Muitas vezes, testemunhas em favor das mulheres também são alvo dos ataques.
Projeto de lei quer proteger advogadas e testemunhas
Um projeto de lei tramita na Câmara dos Deputados para proibir uso de expressões ofensivas sobre o comportamento sexual ou a reputação social de partes ou de testemunhas em processos cíveis.
A proposta, de autoria dos deputados Marcelo Freixo (PSB-RJ), Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e Lídice da Mata (PSB-BA), proíbe o tratamento discriminatório na produção de provas no decorrer de um processo não criminal. A proposta quer incorporar garantias semelhantes às previstas na Lei Mariana Ferrer, que protege vítimas de crimes sexuais em julgamentos, na esfera cível. O projeto está em análise na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, aguardando votação.
Caso aprovado, o PL que tramita no Congresso Nacional também vai afetar casos relacionados à Justiça do Trabalho, outra área que Ruzzi enxerga muitas situações de ofensas e descrédito a mulheres.
Em setembro de 2021, por exemplo, a advogada defendeu um caso de assédio sexual em que, após comentários de cunho sexual constantes e tentativa de aproximação física, uma funcionária decidiu processar um homem com cargo superior na hierarquia da empresa.
"É muito difícil nos tribunais provar assédio sexual no trabalho porque são violências que costumam acontecer escondidas. Muitas vezes, quando elas acontecem, estão entre vítima e agressor. E em muitos lugares em que isso acontece não são casos isolados, são locais de trabalhos que têm uma cultura de assédio."
Outras mulheres que sofreram violências semelhantes na mesma empresa decidiram testemunhar a favor da cliente de Ruzzi. A advogada conta, no entanto, que o advogado da outra parte questionou a uma dessas mulheres "se elas não estavam dando em cima do cara e, ao descobrir que ele era casado, ela estava arrependida".
"Uma delas ficou tão abalada com as perguntas que o juiz teve que intervir, e isso impediu que elas fossem respondidas. Nesse caso, o magistrado teve sensibilidade, mas essa não é a regra", diz a advogada.
A advogada Beatriz de Almeida também defendeu um caso de assédio sexual em ambiente de trabalho, em novembro de 2019. Como estratégia de defesa, a advogada convocou testemunhas para depor a favor de sua cliente, que acusava um gerente de assédio sexual, e priorizou mulheres. "Tinham outras testemunhas desse assédio e do comportamento inadequado do gerente, mas escolhemos levar mulheres porque a visão que um homem tem de uma cantada é diferente, envolve questões subjetivas".
Na audiência, a juíza do caso chegou a perguntar se não haveria homens como testemunhas e questionou se as mulheres que estavam depondo também não teriam sofrido assédio.
"Ela dizia coisas como: 'Não é estranho você ser mulher no mesmo ambiente, na mesma posição e não ter sofrido assédio também?'", relata Almeida. "No final, isso não mudou o resultado, pois ganhamos o caso em segunda instância, mas foi uma atitude de descrédito e foi desrespeitosa. A mulher estava ali como uma ouvinte que presenciou o fato, não como uma vítima. Suas afirmações não eram levadas a sério."
Em outro processo defendido por ela, em 2018, um juiz chegou a acelerar o acordo entre as partes para encerrar a fase de instrução, quando testemunhas são ouvidas e as provas são colhidas, após a morte de um homem que iria depor no processo.
A ação pedia indenização em um caso de agressão mútua entre duas mulheres e, além do homem que havia falecido, a outra testemunha ocular era uma mulher.
"O juiz me perguntou se a gente tinha uma testemunha imparcial. Argumentei que ela era imparcial. Ela não era familiar direta ou colateral nem tinha relação íntima ou hierárquica com as partes. Mas ele disse que ela era mulher, então ela não seria imparcial e iria pender para um dos lados", relatou a advogada. "Mas não há nenhum embasamento legal nisso, Código de Processo Civil não fala em nenhum impedimento de gênero para testemunhas", contou a advogada.
"Ele ficou forçando para que as pessoas firmassem um acordo, o que no final das contas foi feito porque o magistrado já estava decidido. Ele disse não era obrigado a considerar o que a testemunha falaria, já que ele analisa e dá peso a uma prova como achar conveniente"
"Ofensas e atos discriminatórios deveriam gerar multa", diz advogada
Para Almeida, as constantes ofensas a advogadas e testemunhas geram silenciamento em vítimas. Ela considera o projeto de lei que tramita no Congresso importante, mas acredita que a medida, sozinha, não vai acabar com a prática de discriminação nos tribunais.
"Esse estigma da mulher passional, defensiva, que se padece por outra mulher ou por causa femininas, como eles gostam de dizer, é uma construção social e de viés subjetivos", analisa.
"Pode ser que a pessoa não acuse verbalmente, mas, na hora que ela for julgar, não podemos esquecer que a figura do juiz ainda é um homem ou uma mulher, via de regra, dentro de um padrão normativo hegemônico. Então, eles demonstram descrédito não só de gênero, mas de raça, orientação sexual. Um projeto de lei pode falar que isso não vai ser verbalizado, mas na hora de dar o peso, para quem será que vai ser dado o crédito?", questiona.
Marina Ruzzi acredita que, para melhorar o projeto, além da denúncia, o texto poderia prever o pagamento de multa ao ser uma condição atrelada a possíveis atos e falas discriminatórios.
Presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo, Isabela Castro diz que a iniciativa do projeto é equilibrada. "É importante para que essas práticas sejam coibidas. Infelizmente, muitas pessoas temem entrar com processos ou serem testemunhas porque podem ser humilhadas durante o processo."
Ela afirma que, mais que a aprovação da proposta, a legislação precisa ser aplicada. "Neste caso, o juiz, o Ministério Público, a Defensoria Pública, ou seja, membros que estão coordenando a audiência, precisam conduzi-la com boas práticas e não permitindo que haja desmerecimento ou humilhação com qualquer pessoa que seja."
Além da proibição de expressões ofensivas, o texto assegura que qualquer pessoa que souber de tratamento discriminatório em audiências pode encaminhar denúncias aos órgãos que apuram infrações éticas de membros do Judiciário.
"Muitas vezes, a vítima dessas acusações fica acuada e se sente sem força para dar andamento a uma queixa. Ter as portas abertas para que qualquer pessoa tome essa iniciativa é muito bom. Além disso, sempre vale a possibilidade de que haja responsabilização de quem praticar essas ofensas, na área criminal ou na área civil", conclui Castro.
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