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'Childfree' ou intolerância? Filhos de influencer são hostilizados em voo

A criadora de conteúdo Lala Rebelo é mãe de Vinicius (3 anos/93 voos) e Miguel Mig (1 anos /31 voos) - arquivo pessoal
A criadora de conteúdo Lala Rebelo é mãe de Vinicius (3 anos/93 voos) e Miguel Mig (1 anos /31 voos) Imagem: arquivo pessoal

Pamela Carbornari

Colaboração para Universa

24/02/2022 04h00

Os pequenos Vinícius, de 3 anos, e Miguel, de 1 ano, já conhecem Albânia, França, Belize e uma porção de destinos paradisíacos no Brasil. Seus 93 e 31 voos no currículo, respectivamente, se explicam pelo fato de serem filhos da blogueira Lala Rebelo. Há oito anos mostrando hotéis de luxo e cenários de tirar o fôlego pelo mundo, hoje as viagens em família são o foco do Instagram de Lala, que reúne mais de 240 mil seguidores.

Recentemente, Lala interrompeu os costumeiros posts com malas, brinquedos e dicas de hospedagem para compartilhar o relato de um voo em que sua família foi hostilizada. No vídeo, a influencer diz que, antes mesmo da decolagem, duas mulheres disseram aos comissários, na frente da família, que não queriam viajar perto dos filhos de Lala. Em um determinado momento, o filho mais velho da influencer se mexeu na poltrona. Foi o bastante para começar o tumulto. "Ele estava se ajeitando na cadeira. Não foi que ele passou a noite toda encostando na cadeira da frente. A mulher começou a gritar que a gente tinha agredido ela, que iria nos processar por lesão corporal. Foi realmente uma explosão de intolerância".

A blogueira cuiabana relata que depois da confusão, a passageira à frente passou a fazer movimentos bruscos com a poltrona que chegaram a derrubar o celular de Lala, apoiado na mesa do avião, em Vinícius e que, em outro momento, o assento bateu na cabeça de Miguel, que estava no colo do pai. Segundo a influencer, nem a equipe de comissários nem os passageiros próximos se manifestaram em solidariedade à família.

"Os meninos ficaram muito assustados. Meu filho de 3 anos fala até hoje 'por que aquela mulher estava brava no avião?', Mas depois do incidente, como era um voo noturno, eles dormiram. Já eu nem pisquei os olhos, porque do jeito que essas pessoas pareciam odiar crianças, fiquei realmente com medo de acontecer alguma coisa com os meus filhos", lembra Lala, em entrevista a Universa.

Apesar de ter ficado mais tensa antes de pegar voos com a família, ela conta que voltou a viajar porque faz parte de seu trabalho. Além desse episódio, ela diz que já se sentiu julgada por estar com crianças em hotéis, restaurantes e em outros voos, mas a abordagem sempre aconteceu de maneira mais branda.

Mas Lala tem percebido um aumento da intolerância com crianças e isso é notório, inclusive, nas interações em seu Instagram. "As pessoas comentam que não gostam mesmo de viajar com criança, que não gostam. Mesmo sabendo que a dona daquele perfil viaja com criança, tem filhos, parece ser normal e aceito não gostar." E complementa, citando os seguidores que saíram em sua defesa na publicação sobre a confusão no voo. "Muitas pessoas escreveram nos comentários sobre substituir a palavra 'criança' por qualquer outro grupo. Por exemplo, idosos. Imagina você falar isso na cara de alguém? 'Ah, eu não gosto' ou 'odeio', não pode. Mas por que é socialmente aceito falar assim de criança?".

Respeito é bom e criança também gosta

Apesar de ter ficado mais tensa antes de pegar voos com a família, Lala diz que jamais deixaria de viajar com eles. "Gosto de mostrar que não é tão fácil assim viajar com crianças, mas que vale a pena" - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Apesar de ter ficado mais tensa antes de pegar voos com a família, Lala diz que jamais deixaria de viajar com eles. "Gosto de mostrar que não é tão fácil assim viajar com crianças, mas que vale a pena"
Imagem: arquivo pessoal

A psicóloga especialista em comportamento infantil Vanessa Dias Kfouri, do Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento, ressalta que quanto mais se investe no desenvolvimento infantil e se respeita a infância, maior será o retorno não só para a própria criança, mas para a sociedade como um todo. "Quando exigimos que a criança se comporte como um adulto, estamos acelerando um processo natural de desenvolvimento e pulando etapas que são fundamentais para a sua relação com o mundo. Externamente, a criança pode até agir como um adulto, mas internamente, até mesmo por questão de maturidade cerebral, ela não dá conta desse papel. Diante disso, aumentam as chances de surgimento de problemas emocionais (ainda na infância ou futuramente na vida adulta) como elevada autocobrança, agressividade, insegurança, dificuldade de lidar com frustrações e de socializar, ansiedade, estresse e até mesmo depressão".

Para Vanessa, comportamentos intransigentes e individualistas em relação a crianças podem ser um reflexo da infância que o adulto em questão teve. "Provavelmente não houve respeito ao seu processo de desenvolvimento, aos seus sentimentos e necessidades enquanto criança, a ponto de reproduzir o mesmo comportamento na vida adulta. É o modelo de uma vivência intolerante e violenta na infância sendo reproduzido na vida adulta".

A origem do polêmico "childfree"

O movimento "childfree" (livre de crianças, em português) surgiu nos Estados Unidos como uma resposta à parentalidade mandatória. Em 1972, na Califórnia, foi fundado o grupo National Organization for Non-Parents, que trocou de nome na década seguinte para National Alliance for Optional Parenthood, e se alastrou pelo Canadá e Europa, ganhando força principalmente entre as mulheres que se sentem obrigadas a serem mães e defendem o direito a não a ter filhos. O manifesto do We Are Childfree cita um relatório da Organização das Nações Unidas publicado em 2021, que mostra que quase metade das mulheres no mundo não têm liberdade para decidir sobre fazer sexo ou não, usar contracepção ou buscar auxílio médico.

Mas apesar de o "childfree" ter origem na busca das mulheres por mais autonomia, o movimento recebe muitas críticas que afirmam que ele se afastou do ideal feminista e ganhou outros rumos mais radicais, como a restrição de crianças a determinados locais e a defesa pela não interação com elas. Restaurantes, hotéis e até festas de casamento se autodenominam "livres de criança" por não terem estrutura para garantir a segurança dos pequenos ou até mesmo para atrair clientes que não querem conviver com elas.

Dentro do movimento há quem se posicione em prol da "tranquilidade" dos demais clientes e outros que abertamente não toleram o contato com crianças - como é o caso da página brasileira "Somos Childfree", que compara a vida de pessoas com e sem filhos em publicações ácidas, e tem mais de 300 mil seguidores no Facebook. No primeiro grupo, se destacam também estabelecimentos que criam áreas específicas onde as crianças não podem circular.

A psicóloga Vanessa Dias destaca que não querer ter filhos é diferente de não querer conviver com crianças, embora possam existir pessoas que adotem as duas ideias. "Ter o direito de optar por ter ou não filho é totalmente legítimo e válido, porém não aceitar crianças em espaço público, além de ser discriminatório, infringe os direitos delas. Dessa maneira, o movimento das pessoas que desejam apenas questionar e defender a maternidade compulsória pode perder forças ao ter as suas ideias invalidadas, desencorajadas e diminuídas por serem associadas ao discurso do movimento mais radical 'childfree".

O cerceamento da liberdade das mulheres pode ser um reflexo dessa ramificação do movimento, e isso fica claro no caso de Lala: "Gosto de mostrar que não é tão fácil assim viajar com crianças, mas que vale a pena. Mostrar o mundo para as crianças não é um capricho dos pais. Sou mãe, sempre viajei e não vou parar de viajar porque eu tive filhos. Eles vão comigo e eu acho que viajar torna as pessoas mais adaptáveis, mais flexíveis e mais tolerantes às diferenças. Espero que os meus filhos nunca sejam a pessoa que vai tratar mal alguém, no avião ou aonde for", diz a blogueira.

"Proibir que crianças frequentem hotéis, restaurantes é ilegal", diz advogada

Na prática, o desejo por lugares livres de crianças pode até reunir milhares de adeptos, mas na legislação brasileira não faltam amostras sobre como e por que menores de idade devem ser respeitados e protegidos com prioridade absoluta. Um exemplo é o artigo 227 da Constituição Federal, que norteia o Estatuto da Criança e do Adolescente: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão."

De acordo com a advogada e coordenadora jurídica do Instituto Alana, Ana Cláudia Cifali, proibir que crianças frequentem hotéis, restaurantes e demais ambientes é ilegal, abusivo, discriminatório e configura uma violação grave de direitos. "Se uma família está disposta a consumir em determinado estabelecimento, ela não pode ser impedida apenas porque tem pessoas que podem não gostar da sua presença. Temos exceções em casos extremos, claro. Uma família pode ser convidada a se retirar de algum lugar se as crianças estiverem importunando as demais pessoas, se comportando de forma violenta sem que os seus pais reajam, mas isso aconteceria da mesma forma se fosse um adulto incomodando as outras pessoas".

A advogada acrescenta que, além da parte legal, existe uma "responsabilidade ética civilizatória" para acolher as crianças e criar espaços mais diversos e solidários. "Ninguém tem a obrigação de gostar de criança, mas ter atitudes preconceituosas e demandar medidas a partir do seu preconceito já não é cabível. Ouvir o choro de uma criança, por exemplo, é um mero dissabor que faz parte da vida em sociedade. É importante lembrar que não é preciso gostar de alguém para respeitar os seus direitos. Os direitos humanos são aqueles que a gente possui pelo simples fato de existirmos como pessoas, independentemente do gosto ou da opinião alheia".

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor também considera que impedir a entrada de crianças em um estabelecimento e criar áreas específicas para adultos é ilegal e inconstitucional. O órgão afirma que, por gerar uma situação vexatória para a criança, a prática viola o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição Federal. Sob o aspecto da defesa do consumidor, o Instituto entende que restringir a entrada de crianças é uma prática abusiva, conforme artigo 39, IX do CDC, pois é proibido recusar bens ou serviços diretamente a quem se disponha a adquiri-lo por pronto pagamento. Os estabelecimentos não podem usar o princípio da livre iniciativa para limitar a entrada de crianças, com exceção de locais inapropriados para esse público".