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Irmãs de Pau: 'Dá orgulho de ser travesti no funk, mas não somos só isso'

A dupla de funk "Irmãs de Pau" - Divulgação
A dupla de funk "Irmãs de Pau" Imagem: Divulgação

Júlia Flores

De Universa

24/02/2022 04h00

Quem ouve o nome "Irmãs de Pau" logo se assusta. Mas esse estranhamento é proposital. "Somos aquilo que vocês acham que somos, ou aquilo que vocês não querem que a gente seja", diz uma das integrantes em entrevista a Universa.

Ambas nascidas em São Paulo, Vita Pereira e Isma Almeida se conheceram na época do colegial (hoje, ensino médio), mas firmaram amizade durante o movimento das ocupações estudantis que aconteceu em 2015 contra as reformas educacionais que o governo de Geraldo Alckmin pretendia promover no estado. Na época, a dupla chegou a "dividir o mesmo teto" e a convivência durante os protestos fortificou a relação.

"As ocupações possibilitaram a gente viver uma história em que nossa história foi respeitada. Mesmo as pessoas que não eram LGBTQIA+ nos aproximaram. Lá, a gente acordava, dormia, morava junto. Começamos a criar uma humanização da nossa história, nossos colegas passaram a olhar para as travestis de outra forma", relembra Vita, de 25 anos.

Isma, de 23, também comenta sobre o período: "A Vita me inspirou bastante no processo de aceitação. Ela já estava há mais tempo fazendo a transição de gênero e, por isso, eu perguntava bastante coisa para ela. Descobrimos que tínhamos ideais parecidos e um jeito louco de ver a vida".

Do período das ocupações para cá, quase sete anos se passaram. O tempo não foi capaz de separar as amigas que, impulsionadas pelo período de isolamento social, decidiram criar a primeira dupla de travestis do funk. Em 2021, "Dotadas", álbum pioneiro das cantoras, chegou aos principais serviços de streaming do Brasil.

Reaproximação forçada

Irmãs de Pau - Divulgação - Divulgação
Irmãs de Pau
Imagem: Divulgação
Irmãs de Pau - Divulgação - Divulgação
Irmãs de Pau
Imagem: Divulgação

Antes de abraçarem a linguagem da música, Vita e Isma exploraram outros formatos artísticos para expressarem seus ideais, como cinema, arte, fotografia. Depois das ocupações, as duas ingressaram no mesmo curso de faculdade, pedagogia — cada uma em uma cidade: Vita em Araraquara (SP) e Isma em Uberlândia (MG).

Em paralelo, desenvolveram projetos pessoais. "Éramos DJs, eu criei a o 'Baile da Cuceta', em Belo Horizonte, e Vita, a festa 'Travada'. Não vou dizer que sempre sonhamos em ser cantoras, mas o momento da pandemia foi propício para que criássemos o Irmãs."

A gente sempre gostou muito do glamour artístico, do camarim, de estar no palco. Escolhemos o funk porque é um estilo que não cobra técnica da galera, tem mais a ver com expressão

Isma

Em 2020, a pandemia fez com que as artistas reniventassem o modo como se expressavam. Trancadas em casa, decidiram se unir para um projeto em conjunto. Com mais tempo livre para focar na carreira musical, as duas escreveram letras, gravaram canções de forma independente e lançaram as obras em diferentes plataformas de streaming ("Travequeiro" foi a primeira), tudo por conta delas.

O objetivo central da dupla — como as letras e nomes podem demonstrar — é subverter, através da linguagem, alguns preconceitos. "Somos irmãs (mesmo que não de sangue). A gente só se tornou o que somos hoje porque passamos por famílias complicadas e foi a dor e o afeto que, inicialmente, nos uniram. Mas hoje vemos que somos além da dor", garante Vita.

A ousadia das Irmãs, porém, tem seu custo. Em janeiro o canal do Youtube das funkeiras foi tirado do ar. A justificativa do site é que os clipes violavam "diretrizes da empresa" sobre nudez e pornografia. Vita e Isma acusaram a plataforma de transfobia. "Só as Irmãs de Pau estão cantando putaria nesse Brasil?", escreveram em um comunicado. Pouco depois, a conta foi recuperada.

Pretas, periféricas, travestis... mas não só

Irmãs de Pau - Divulgação - Divulgação
Irmãs de Pau
Imagem: Divulgação

Em 2022, a participante do "Big Brother Brasil" Linn da Quebrada trouxe para debate público a ressignificação do termo "travesti", usado antigamente em tom pejorativo para se referir a mulheres transexuais.

Hoje em dia reconhecem como nome social o nome que as travestis querem para si, mas antigamente tinha o conceito de "nome de guerra". Nosso nome de guerra é Irmãs de Pau, porque entendemos que vivemos em uma guerra

Vita

Para as duas, é de extrema responsabilidade serem reconhecidas como "as travestis do funk". "O movimento da travestilidade é plural e singular ao mesmo tempo; estamos aqui representando as travestis, as pretas, as periféricas, mas não somos as únicas e não somos suficientes. A gente canta as dores da Isma e da Vita, não as de todas as travestis do Brasil", frisa Isma.

A artista questiona a existência de classificações e categorias. "Não existe playlist de funk cisgênero; por que tem que ter playlist só com música de travesti?". Vita completa: "Estamos espertas para entender como o mercado se organiza e desorganiza de acordo com o momento histórico que vive. Na hora de dar patrocínio, nenhuma empresa aparece".

Para tentar quebrar essa lógica de mercado, as cantoras se lançam para novos desafios. Se o primeiro álbum (que contou a participação da rapper Jup do Bairro) foi voltado para as dores e desafios de gênero, agora elas querem focar no afeto, porque travesti também ama — como repetem as duas.

"Caso a gente 'bombe' com uma música que não é sobre travesti, podemos tocar em várias festas e é assim que a massa vai conhecer nosso trabalho", prevê Isma. Foi com essa intenção que a dupla lançou, em janeiro de 2022, a música "Vingança da Malo'key".

Vitta explica melhor a estratégia das duas, que assumiram "Irmãs de Pau" como nome de guerra na luta (guerra que mata 175 pessoas por ano no Brasil): "A ideia com nossas novas músicas é alcançar o grande público. Queremos cantar o funk que muita gente está ouvindo. Ficar presa em letras de dor e sofrimento é ficar presa em um fetiche que a branquitude quer nos impor. Como se a gente pudesse falar apenas da nossa sexualidade e da nossa questão de gênero. Na verdade, somos mais do que isso; somos missionárias de um novo mundo que está sendo construído".