Nem masculino nem feminino: ativista muda documento para gênero não-binário
A primeira parada LGBTQIA+ do Brasil, em 1995; os primeiros decretos por nome social para pessoas trans e travestis; os primeiros congressos de saúde pública e manifestações por igualdade de gêneros: Indianarae Siqueira, 50, ativista pelos direitos LGBTQIA+ há pelo menos 30 anos, esteve presente em todos esses eventos históricos — pelos quais foi presa oito vezes. Há seis anos, criou um dos mais importantes centros de acolhimento a travestis e transexuais do país, a Casa Nem. Mas a maior conquista de sua vida, conta, em entrevista a Universa, foi a retificação de seus documentos para o gênero não-binário, o que significa que, legalmente, não se define nem como homem, nem como mulher.
"É o reconhecimento de uma luta de quase 30 anos", fala. "É um alívio não precisar escolher um gênero e é revigorante saber que as novas gerações nascerão sem essa obrigação".
Seus documentos foram retificados em Paranaguá (PR), sua cidade natal, e são os primeiros do estado do Paraná a ter o gênero não-binário — "foi como renascer", diz. É, também, um dos poucos do Brasil, já que esse tipo de alteração só é possível a partir de uma decisão judicial.
Indianarae diz que não sabe muito bem em que momento passou a se entender como uma pessoa não-binária, mas que nunca se identificou completamente com o gênero masculino nem com o feminino — por isso, em respeito à sua identidade, não quer ser tratada por artigos de gênero e prefere ser tratada com linguagem neutra, como quando se usa a letra "e" ao final das palavras.
Agora, Indianarae, que já teve um documentário sobre sua vida exibido no Festival de Cannes, prepara seu próprio filme, "Em Nosso Nome", que vai contar a história da luta pelo nome social de pessoas trans e travestis no Brasil.
Nesta entrevista, conta que vive há três décadas sob ameaças de morte e diz que reconhecer a não-binariedade é o caminho para o Brasil conquistar de vez a igualdade entre homens e mulheres.
"O reconhecimento de uma pessoa não-binária é um ato revolucionário. A partir do momento que as pessoas não precisarem mais se identificar, não vai existir mais roupa feminina e roupa masculina, serão só tecidos, e os banheiros passarão a ser sem gênero, ou criarão um terceiro banheiro sem gênero, para incluir todo mundo", defende.
"Quando houver a possibilidade de bebês serem registrados sem gênero, toda a sociedade terá que se adaptar. O sistema de saúde e as escolas serão para todas as pessoas. A aposentadoria vai exigir o mesmo tempo de serviço. Tudo vai se igualar, a sociedade será mais neutra, sem diferenças entre os gêneros. É uma mudança que beneficia todas as pessoas".
Ameaças e rotina sob escolta
Há pelo menos 25 anos, Indianarae convive com ameaças.
As primeiras surgiram depois de sua participação na Conferência Municipal de Saúde de Santos (SP), em 1996. Durante o evento, foram aprovadas iniciativas favoráveis à população LGBTQIA+, como o uso do nome social no prontuário médico e a internação de travestis e mulheres transexuais em alas femininas.
O assunto ainda era muito novo, foi noticiado pela imprensa e gerou polêmica e ameaças graves aos ativistas envolvidos, incluindo Indianarae, que deixou a cidade de Santos, onde vivia, e depois saiu do Brasil.
"No início é aterrorizante. Quando você pensa que está lutando por direitos humanos, para tornar a sociedade melhor e que as pessoas querem te matar por isso, é surreal. Até que caia a ficha da dimensão do problema, demora", lembra.
Em 2010, quando participou de uma conferência na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro), que culminou no primeiro decreto a favor do nome social no Rio, as ameaças voltaram a se agravar, e Indianarae teve que pedir proteção à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia. Desde 2014, vive protegida por seguranças da Frontline Defenders, uma fundação irlandesa que provê segurança a ativistas por direitos humanos em todo o mundo.
"Você não naturaliza o perigo, mas acaba entendendo que aquilo vai fazer parte da sua vida. É complicado, você se sente sem liberdade, claro. Não pode sentar num bar, estar ao ar livre, fazer caminhadas sem estar com seguranças, coisa que eu não gosto", fala. "É tensão o tempo todo: se escuta um pipoco, um grito perto de você, um cachorro latindo. Você vive em sobressaltos".
Apesar do risco, a força para seguir com sua luta se mantém. Nas duas últimas eleições, Indianarae concorreu a uma cadeira na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro (2016 pelo PSOL e 2020 pelo PT), mas não se elegeu. Hoje, se dedica especialmente à Casa Nem, de acolhimento a travestis e transexuais em situação de vulnerabilidade social no Rio— hoje, são duas unidades que ajudam, ao mesmo tempo, cerca de 50 pessoas. Durante a pandemia, a organização se uniu a outras casas de acolhimento pelo Brasil para criar uma rede de apoio, que distribuiu mantimentos, cestas básicas e encaminhou milhares de pessoas aos serviços públicos de saúde e assistência social.
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