Abusos em encontros casuais: 'Senti nojo. Achei que não aconteceria comigo'
Vazio, impotência, nojo do meu corpo e das coisas que fiz comigo mesma. Nunca passou pela minha cabeça que um dia sentiria esses sentimentos após um encontro marcado por um aplicativo de relacionamento, aos 31 anos de idade. Em uma fantasia coletiva, a meu ver, parece que, depois dos 30, já temos uma autoestima consolidada e que, definitivamente, saberemos lidar com qualquer tipo de abuso que venha nos assombrar. Somos superpoderosas em todos os sentidos, ainda mais com tanta informação nas redes sociais sobre empoderamento e autoestima. Sem contar as inúmeras campanhas contra violência de gênero, feminicídio, abusos sexuais e psicológicos com mulheres.
Tinha certeza que não passaria por nada abusivo em relacionamentos casuais. Além disso, com 1,82m, minha estrutura costuma assustar os homens e, relembrando o histórico aqui, nunca sofri assédio ou abuso sexual. Até o fatídico encontro, em um bar de esquina. Fora as conversas por mensagens, aquele sábado foi marcado por uma longa conversa sobre meu date e suas histórias de vida. "Que cara inteligente, interessante e cheio de qualidades", pensei. "Vamos para casa dele? Será?" Fomos. "Cuidado com a minha pegada forte", disse, depois de seis caipirinhas.
No quarto, comecei a me sentir acuada com as atitudes dele, com a "pegada forte". Falei não muitas vezes, inclusive quando ele se recusou a usar preservativo. Alguns sim vieram, mas o medo invadiu meu corpo e entrei em pânico. No fim da relação, ele dormiu, e eu chorei, como nunca havia feito antes. Olhava pela janela e pensava a que eu me sujeitei em busca de migalhas de atenção, expressão que ouvi tanto da minha analista. Com alguns roxos já aparecendo pelo corpo, peguei meu celular e pedi minha saída daquele lugar. Ele acordou e perguntou se não queria ficar mais um pouco. Secando as lágrimas e fingindo que nada estava acontecendo, falei que precisava dormir. Juntei tudo rapidamente e saí. No hall do apartamento, o choro copioso inundou o meu rosto e a roupa que eu vestia. Sim, Tainá, você foi abusada sexualmente e psicologicamente.
Como foi duro, ácido, amargo e doloroso admitir esse fato. No dia seguinte, não consegui sair da cama, revirando as memórias e procurando respostas para sair daquele pântano. Mandei mensagem para ele falando que tinha ficado com medo e me sentido acuada. Em resposta, ele disse que não queria ter passado essa impressão e se desculpou brevemente. Não sei se foram as caipirinhas (que não são desculpa para nenhum tipo de abuso ou violência) que fizeram ele usar mais força e fazer escolhas equivocadas. Porém, a culpa de ter transado assolou meu cérebro por duas semanas, com sessões extras de terapia para controlar o maremoto interior.
Mais calma, marco outro date. Novo cara, mas a mesma situação de encantamento. Na minha casa, nenhuma violência física, mas o psicológico se abalou quando a camisinha estourou e o cara ficou me enchendo o saco para tomar a pílula do dia seguinte. "Não tenho dinheiro para pagar boletos. Isso (uma gravidez) vai destruir a minha vida", disse o príncipe que se transformou em sapo. Sim, Tainá, você foi abusada. A culpa é minha?
Após inúmeras reflexões e conversas com amigas e amigos, resolvi abrir essa história para outras pessoas e procurar mais ajuda profissional, com o intuito de tentar, de alguma forma, mostrar que o sentimento de culpa precisa ser decupado, entendido e evoluído para atitudes e experiências melhores.
"Aplicativos de relacionamento são lugares de baixa empatia", diz psicólogo
"Quando falamos do ambiente digital e, nesse caso, de aplicativos de relacionamento, estamos falando de um lugar de baixa empatia. Em um mundo tão líquido e veloz, o tempo do abusador mostrar sua verdadeira face é muito rápido também. A tendência é que, para grande parte dos homens, esses encontros são encontros. Já para muitas mulheres, pode existir a possibilidade de evolução do encontro para algo duradouro", afirma Rossandro Klinjey, psicólogo, professor, consultor em Educação e Desenvolvimento Humano, em uma conversa comigo após ouvir meu relato.
Enquanto conversava com Rossandro, me vi na situação que ele detalha. Quantas vezes não fui a um encontro falando que era só um sexo casual, mas, depois, me pegavaa imaginando andando de mãos dadas com o cara, indo ao cinema e fazendo aquela janta no fim de semana.
Para o psicólogo, alguns sinais de que aquele príncipe seja uma cilada podem ser percebidos antes do primeiro encontro, no momento da troca de mensagens, nos ajudando a prevenir danos físicos e psicológicos maiores. "Se a pessoa precisa se vender muito, mostrar seus atributos logo de cara, algo está errado. Quando a pessoa quer uma relação, ela vai para escutar o outro e pontua suas visões de mundo em alguns momentos. Não sai fazendo o seu 'branding' logo de cara", afirma o psicólogo.
Além da questão dos aplicativos, há ainda o fato de muitas de nós pensarmos que, por lermos muito sobre violência contra mulher e nos informarmos sobre autoestima e amor-próprio, nessas ciladas nunca cairemos. É a fragilidade tardia.
A empresária Vivi*, 30, também foi pega de surpresa por isso. No trabalho, a troca de olhares com um colega era gostosa e parecia saudável, mas o encontro foi um desastre. "Estou há tempos trabalhando para elevar minha autoestima, com análise e tratamentos holísticos, mas todo esse trabalho foi por água abaixo ao perceber que estava questionando minhas crenças, minhas habilidades, após nossa ficada", conta ela.
Logo após o date, Vivi conta que a atitude do homem mudou, e ele passou a abusar psicologicamente dela no trabalho. Dizia que seus projetos não eram tão bons assim e que sua conduta profissional era questionável, além de tentar colocar outros colegas contra ela. "Como alguém pode se transformar tão rápido? Foi 'o beijo no sapo' ao contrário? Me senti um lixo por muito tempo, ele pisou muito em mim. Não queria falar com ninguém sobre o ocorrido, só com duas amigas mais próximas", diz ela, que pediu demissão da empresa.
"A violência psicológica é muito sutil. Geralmente, ela vem de uma pessoa narcisista por natureza, que só tem o 'eu' como objetivo de vida. Quase um 'Highlander emocional', que não morre e não para nunca. Ninguém está livre de encontrar com pessoas assim. Nunca subestime uma pessoa má", indica Rossandro.
Hoje, ainda penso se os caras que eu encontrei são pessoas más. O segundo sumiu, então essa resposta não terei. No entanto, com o primeiro, continuei conversando e ainda apontei meus sentimentos do ocorrido entre nós dois. Surpreso, ele disse que não queria que a impressão fosse essa e que a intenção dele passou longe de ser abusivo. "Estamos falando de um machismo estrutural, que faz com que muitos homens tenham essa normalização de uma 'pegada mais forte'. Para ele, não aconteceu nada de diferente do roteiro de um encontro casual", pontua o psicólogo.
Estou me distanciando aos poucos desse cara 'encantador', cortando os laços que criei, com a ajuda da minha analista, cujas sessões me fizeram entender sobre como o meu medo do abandono também intensifica a culpa pela fragilidade tardia. Como disse Rossandro, ninguém escapa de uma rasteira. Vivi* e eu estávamos e continuamos em tratamento, mesmo após essas quedas feias. As duas procurando novas formas de aprender com esses acontecimentos.
"Precisamos ver o sentimento de culpa como uma forma de aprendizado. A culpa não é para nos torturar, mas, sim, para nos alertar do que não fazer. Um exemplo mais palpável é a metáfora com o gás de cozinha, que é inodoro. Porém, para evitar acidentes, foi-se adicionado um cheiro. Então, o cheiro não é para a gente ficar alarmado, com medo, mas para ficarmos alertas e desligarmos o gás, assim que sentirmos esse odor característico", enfatiza Rossandro.
*nome trocado a pedido da entrevistada
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