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'Fui vítima de relação abusiva e hoje uso o futebol para proteger meninas'

A empreendedora social Karina Paz, criadora do projeto As Jogadeiras - Arquivo pessoal
A empreendedora social Karina Paz, criadora do projeto As Jogadeiras Imagem: Arquivo pessoal

Karina Paz, em depoimento a Ed Rodrigues

Colaboração para Universa, do Recife

05/03/2022 04h00

"Eu cresci em uma comunidade marcada pela violência, em Olinda (PE). Presenciei assassinatos, tiroteios constantes e vi alguns amigos de infância perderem a vida ainda na adolescência por causa dessa guerra. Vivi com a opressão de meu pai e mais tarde me percebi dentro de uma relação abusiva ainda aos 13 anos. Todas as violências me fizeram pensar em proteger outras meninas. Foi quando criei o projeto As Jogadeiras, que oferece uma rede de apoio às garotas por meio do esporte e com o auxílio de uma equipe multidisciplinar.

Essa história começa na infância. Embora tivesse a minha mãe como referência de amor e que tentava transformar aquela dura realidade, dentro de casa também convivi por um bom tempo com a violência de um pai autoritário e alcoólatra, que só mudou quando entrou na igreja evangélica.

Naquele período, eu já tinha sido programada para ser extremamente vulnerável, feita de medos e inseguranças. Aos 13 anos, ainda brincava de boneca. Eu gostava de fazer casinha de caixa de papelão para a Barbie usada que ganhei. Eu sonhava com uma vida diferente, na qual eu já seria adulta, com uma casa segura e uma família feliz... Sonhava com um príncipe em um cavalo branco que viria me salvar.

É exatamente essa lembrança que tenho quando tive o primeiro contato de flerte de um homem 10 anos mais velho, que passou a me assediar constantemente até eu me sentir envolvida e apaixonada, aos 13 anos. Ele era um típico cara do bem e isso foi o suficiente para os meus pais naturalizarem o pedido de namoro feito em casa e permitir aquela relação. Afinal, na visão deles, eu não estaria me envolvendo com algum menino 'sem futuro' da comunidade.

Tudo foi muito conturbado desde o primeiro momento. A manipulação, o ciúme, a possessividade, o controle, o abuso, a violência daquele relacionamento eram invisibilizados. Ninguém me alertou, ninguém quis evitar. Eu já estava presa em todos os sentidos naquela relação sem ao menos perceber.

Karina - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Karina Paz: 'Passei a sonhar em dividir a minha mãe, que era a minha referência de amor, com outras crianças'
Imagem: Arquivo pessoal

Começamos a construir uma casa para planejar o casamento e virei evangélica. Então, aquela meta virou uma questão que envolvia a fé. Construir uma família era a minha única chance de ser feliz e só me deixei levar por aquela esperança. Casei sem saber que aquelas paredes que ajudei a levantar seriam o cenário do meu drama.

Se hoje em dia a sexualização precoce das meninas é naturalizada, imagina há 23 anos, que não tínhamos acesso à informação.

Os meus pais não tinham certeza porque aparentemente ele era uma boa pessoa e na maioria das vezes as agressões eram feitas quando estávamos sozinhos, pois a imagem de 'homem de bem' precisava se manter intocada.

Havia muitos sinais e muita gente à minha volta percebia, mas esse tipo de situação sempre foi naturalizado pela sociedade e silenciada. Inclusive, uma das maiores dores que carreguei foi quando me dei conta da situação e não me lembrei de ninguém que tivesse me dito 'eu te avisei'. É como caminhar em meio a uma multidão em direção a um precipício sem saber que ele estava ali e cair nele.

Passei a começar a ter consciência quando completei 18 anos. Já estava insegura sobre a decisão de casar porque já tinha sido agredida em algumas situações, mas foi no mesmo período que comecei a frequentar a Assembleia de Deus, e todos os direcionamentos que eu tinha eram sobre constituir família.

Depois disso, tudo piorou, eu já não era mais aquela menina, então a manipulação e a distorção da realidade já não eram mais as mesmas. Eu já estava com uma personalidade formada e já sentia vontade de expressar as minhas próprias opiniões sobre tudo. Então, o controle por meio da violência física virou rotina. Sofri agressão várias vezes, seja porque cumprimentei um irmão na igreja ou porque estava assistindo a cantores na TV.

Karina - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Em 2021, Karina iniciou o projeto de futebol feminino chamado As Jogadeiras de Olinda
Imagem: Arquivo pessoal

Eu sofria sozinha, não contava para ninguém, tinha vergonha de acharem que eu gostava de apanhar e tinha medo de julgamentos Cheguei a ouvir de pessoas próximas a ele: 'Se apanhou é porque alguma coisa fez'.

Aos 26 anos, eu já não suportava mais esconder tanto sofrimento. Mesmo sem falar, uma prima percebeu que tinha algo errado comigo e pediu à minha tia que fosse na minha casa para sondar. Nessa conversa, abri o meu coração para ela e recebi o apoio que precisava. Naquela mesma noite, quando ele percebeu a situação, me ameaçou novamente e pedi socorro a uma pessoa próxima a ele, que interveio sugerindo que ele me deixasse seguir. Então, a pessoa me levou naquela madrugada até a casa da minha mãe.

Eu tinha muito receio de causar uma decepção ao meu pai, mas ele me abraçou e disse que aquela casa ainda era minha.

Me fortaleci como mulher, me informei. E, após quatro meses, recomeçaram as ameaças por causa da possibilidade de divisão da casa no divórcio. Eu denunciei, recebi medida protetiva e consegui o divórcio oficial.

A partir dali, conheci a liberdade com a qual tanto sonhei. Eu podia escolher qual tipo de música eu realmente gostava, podia sorrir para qualquer pessoa sem medo, falar o que eu sentia e o que pensava. Eu descobri que poderia sonhar os meus próprios sonhos. Reescrevi a minha história, vivenciei a beleza da vida, fiz vários amigos, sou mãe de um menino de 4 anos e sigo uma sonhadora.

Rede de apoio

Comecei a trabalhar e fui estudar. Primeiro comecei o curso de direito, mas no 5° período descobri que queria mergulhar no mundo do terceiro setor, pois ali eu já estava vivendo o sonho de criar um trabalho social para as crianças da comunidade em que cresci. Então, em 2015, junto com alguns amigos que abraçaram esse sonho, nasceu a ONG Pazear.

Hoje sou empreendedora social e continuo estudando com foco em implementação e coordenação de projetos. É muito doloroso vivenciar essa experiência de violência quando se é tão jovem. Eu passei a querer entender por que aquilo acontecia e continuava a se repetir pelas outras gerações. Eu passei a sonhar em dividir a minha mãe, que era a minha referência de amor, com outras crianças. Eu queria que elas tivessem a oportunidade de ouvir uma voz que falasse que existiam outros caminhos, que tinha um mundo lá fora de possibilidades e que elas poderiam escolher ser o que quisessem.

Jogadeiras

Nestes 7 anos, atuamos como um movimento social que, através do esporte e da educação, promove uma cultura de paz. O nosso carro chefe é o futebol porque a comunidade sempre teve uma relação muito forte com o esporte.

Desde ali, a bola para mim é um amuleto de proteção. E quando entendemos isso, começamos a usá-lo como essa ferramenta de transformação social. Abrimos uma escolinha de futebol, conseguimos material, professores voluntários.

Em 2021, iniciamos o projeto de futebol feminino chamado As Jogadeiras de Olinda, que veio de um olhar mais profundo para todas as violências que as meninas sofrem. Eu sinto que toda essa construção da história da minha vida deságua nesse trabalho com elas porque me vejo nelas.

Essa violência que atinge as meninas é explícita, mas naturalizada, invisibilizada. A gente percebe e não pode deixar de agir.

A proposta é criar um espaço seguro em que possam fazer o que amam sem precisar estar provando o tempo todo que merecem jogar, e se fortalecer sabendo quais são seus direitos.

A equipe das Jogadeiras é toda composta por profissionais mulheres que oferecem orientação profissional e educacional e acompanhamento psicossocial, o que faz toda a diferença para que se tornem mulheres potentes em todas as áreas da vida.

Karina - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Atualmente, o projeto atende 20 meninas de 13 a 21 anos que participam duas vezes por semana das atividades
Imagem: Arquivo pessoal

Atualmente, atendemos 20 meninas de 13 a 21 anos que participam duas vezes por semana das atividades, que são divididas em treinos de futebol e atividades psicossociais. O trabalho é totalmente inclusivo, qualquer menina pode participar.

O projeto também tem o viés de trabalho com os meninos da escolinha de futebol para que aprendam desde cedo sobre respeito à vida das mulheres. O foco do trabalho é agir na prevenção e empoderamento.

Eu gostaria de mandar um recado para a sociedade e para quem faz as políticas públicas e as leis porque antes de eu dizer para a mulher que é vítima de violência que procure ajuda, ela precisa primeiro do acesso, ela precisa que essa ajuda seja efetiva, que as leis sejam aperfeiçoadas e cumpridas.

Só para ilustrar um dos pontos de toda essa narrativa, vou falar da questão da dependência emocional porque o ciclo abusivo começa por aí.

O trabalho de acompanhamento psicólogo é essencial, mas onde está o acesso? Principalmente para a classe social que é a mais afetada. Precisamos de práticas, de ofertas reais de ajuda porque essa questão deixou de ser do 'ninguém mete a colher' para uma questão coletiva.

E para essa mulher que está dentro desse ciclo, eu quero te falar: você não é a culpada, você é a vítima. Se fortaleça através de afeto e informação, se empodere dos seus sonhos, não desista de viver a vida que você pode escolher. E peça ajuda."

Karina Paz, 36 anos, criadora do projeto As Jogadeiras, que oferece uma rede de apoio a garotas por meio do esporte, em Olinda (PE)