Gaby Amarantos: 'A gente precisa entender que gozar é um direito da mulher'
Uma mulher negra, mãe, de origem humilde, que sonha com uma carreira brilhante na música. Essa é a descrição da personagem Emilia, da novela "Além da Ilusão", mas também resume bem a trajetória de sua intérprete, a cantora — e agora atriz — Gaby Amarantos. Aos 43 anos, ela estreia sua primeira novela. "É um sonho de criança", conta, em entrevista a Universa, mas sem deixar de questionar o pouco espaço para mulheres negras e a pressão estética na televisão.
"Sempre que via novela, pensava: 'Caramba, as mulheres negras estão sempre fazendo papel de empregadas?'. Agora, a Emília vai sair desse lugar e conquistar seu espaço", conta. "Mas uma mudança de verdade só vai acontecer quando essas histórias forem contadas do nosso ponto de vista. Torço para que cada vez mais a gente tenha autoras e diretoras que sejam mulheres negras".
Nesta entrevista, Gaby fala sobre suas semelhanças com a personagem e celebra conquistas de direitos femininos desde as décadas de 1930, quando se passa a trama — como o direito à sexualidade, uma das pautas que mais aborda em suas músicas e também no "Saia Justa", programa que apresenta no GNT: "A gente precisa entender que gozar é um direito da mulher", dispara.
UNIVERSA - Em "Além da Ilusão", você interpreta uma mulher pobre, que é mãe de família, mas deixa sua casa em busca de sonhos ambiciosos. Se identifica com essa trajetória?
Gaby Amarantos - Muito. Como Emilia, sou mulher, mãe, venho de origem humilde, sou apaixonada por música, ambas temos companheiros que apoiam nossos sonhos. Também temos humor, uma forma de se divertir fazendo o que gosta. Mas me identifico com ela principalmente nesse lugar de sempre querer o melhor para ela. É uma frase que ela fala muito: "Mas o que que tem querer o melhor para mim?". E tenho certeza que a mulher brasileira vai se identificar muito. Está na nossa história querer o melhor para nós, buscar o melhor, ter uma vida melhor.
E no que vocês são diferentes?
As formas que eu encontrei para realizar cada sonho foram mais lentas -- só agora, com 43 anos, que consegui realizar o sonho de atuar, que tenho desde pequena. Esperei o momento certo. Enquanto a Emilia é muito afobada, não tem paciência, quer o luxo e a riqueza de qualquer forma, e vai usar de alguns artifícios escusos para conseguir o que quer.
Essa é sua primeira novela. Teve medo, no começo, de começar algo novo, em outra área, tendo uma carreira já consolidada na música?
O convite foi uma surpresa, mas falei: quer saber? Vamos lá que eu vou mergulhar. E está sendo incrível, eu estou muito feliz.
Nos últimos anos, novelas de época têm sido criticadas pela forma com que retratam personagens negros. Como avalia a forma que "Além da Ilusão" trata sua personagem nesse sentido?
Sobre as novelas anteriores, tem que criticar mesmo. É isso que a gente quer, que a história, as narrativas, sejam contadas de formas diferentes. Dentro dessa estrutura [da dramaturgia], torço, luto e faço críticas para que a gente possa cada vez mais ter novelas de época e atuais mostrando pessoas negras e indígenas em lugares de poder.
Sempre que via novela, pensava: "Caramba, as mulheres negras estão sempre fazendo papel de empregadas".
Temos que ter plena noção que estamos fazendo uma novela de época. A gente não está falando de 2022, mas das décadas de 1930 e 1940. Mesmo falando dessa época, temos médicos negros, advogados negros, e a Emilia é uma mulher negra que vai conquistar espaços de poder, de riqueza. Espero que a gente olhe pra trás e pense: "Que bom que a gente melhorou".
Acredita que a TV aberta, mais especificamente as novelas, têm o poder de ajudar a recontar a história por outras perspectivas? Acha que já estamos fazendo isso ou ainda falta esforço neste sentido?
Acho que já estamos fazendo, mas uma mudança de verdade só vai acontecer quando essas histórias forem contadas do nosso ponto de vista. Torço para que cada vez mais a gente tenha autoras que sejam mulheres negras. Autores, diretores, essa estrutura toda precisa ser modificada. Isso está acontecendo em "Além da Ilusão": nossa autora é uma mulher [Alessandra Poggi], temos o Jeferson De, que é um diretor maravilhoso, e consultoria de pessoas negras. Isso é muito importante.
A novela se passa entre as décadas de 1930 e 1940. Que avanços você destacaria nos direitos das mulheres, especialmente das mulheres negras, de lá para cá? E o que ainda falta conquistar?
Inúmeros. Imagina, as mulheres tinham acabado de conquistar o direito de usar calça, por exemplo. A mulher estava largando o espartilho e lutando para votar [o que aconteceu em 1932]. Foram muitas conquistas.
Mas as mulheres que, na época em que se passa a novela, brigavam por mais direitos, como as sufragistas, eram mulheres brancas, que tinham acesso à educação e iam para as ruas protestar, e enquanto isso quem cuidava dos filhos e das casas delas eram as mulheres negras, empregadas domésticas.
Hoje, a gente vê avanços chegando também para negras, indígenas, pobres. Ainda há muito a ser feito. A gente ainda precisa normalizar a presença da mulher negra em espaços de poder, de beleza, de intelectualidade.
A Emilia sonha em ser uma cantora de rádio. Isso fez parte da sua história também?
Não vivi essa época das cantoras de rádio, mas lembro que minha avó falava muito das radionovelas, pois o rádio era o grande veículo de comunicação. Durante as pesquisas para fazer a Emilia, ouvi muitas cantoras dessa época, como Carmen Miranda, as irmãs Batista, Aracy de Almeida. E a história dessas mulheres é muito bonita, de muita luta. Assim como elas, a Emilia vai ocupar este mesmo lugar, meter o pé na porta e falar: "Estou entrando, porque luxo, riqueza e glamour também são para mim".
Sua trajetória musical começou na igreja, mas você já contou que teve que deixar esse espaço por ser "animada demais". Teve seu comportamento espontâneo podado, de certa forma? Como isso te impactou?
Sempre fui, desde criança, muito à frente do meu tempo. Da forma como eu me visto, penso que daqui a cinco ou dez anos as pessoas vão entender, ou talvez nunca entendam. Quando eu era da igreja, isso não me impactou de uma forma negativa, mas foi um combustível para mim. Não significa que eu não tenha sentido tristeza e raiva, mas esses sentimentos foram combustíveis para eu entender que eu tinha que fazer minha própria banda, abrir minha própria empresa e fazer meu rolê.
Você fala abertamente sobre sexo em entrevistas, na TV e nas suas músicas. Qual é a importância de falar sobre sexualidade feminina de forma aberta, com naturalidade?
Acho extremamente importante porque a gente precisa entender que gozar é um direito da mulher. Expressar sua sexualidade, entender que cada corpo pode ser livre. É muito bom ver essa onda hoje e lembrar que, há 15 anos, eu já estava falando sobre isso.
"Xanalá" [música e clipe de 2019, em parceria com Duda Beat] foi uma forma que encontrei de me expressar e me conectar com mulheres que me encontram nos eventos, nas redes sociais, e dizem que passaram a se olhar mais no espelho, a olhar para o próprio corpo. A gente tem esse direito.
Você também fala bastante sobre pressão estética e autoestima, principalmente no "Saia Justa" e nas redes sociais. O quanto já avançamos nesse assunto?
Todos os avanços, por menores que sejam, precisam ser comemorados. Mas ainda vou bater na tecla de que a gente precisa ter mulheres que sejam fora do padrão ocupando todos os espaços de beleza, de poder, na presidência, em todos os lugares. Sinda vejo as capas de revistas colocando as mulheres de uma forma muito padronizada. Mesmo que seja uma mulher negra, é uma mulher negra padrão, ou uma mulher indígena padrão, ou uma mulher mais velha padrão. E a gente tem que valorizar cada vez mais a beleza real, natural. Tenho muito orgulho de fazer parte desse movimento. Tudo que eu quero é que a gente continue festejando nossa sexualidade e nossos corpos da forma mais linda possível.
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