'Dizer que feminista odeia homem é infantil. Luta é maior', diz autora
A teoria feminista divide a história do movimento em ondas. A primeira teria começado com o sufragismo, pelo direito ao voto de mulheres, no Reino Unido, no final do século 19. Foi mudando de composição e de bandeiras ao longo dos anos até chegar na atual, a quarta, baseada no uso da tecnologia para disseminação de ideias.
A historiadora britânica Lucy Delap não concorda com nada disso. Apesar de ser um cânone, a teoria das ondas é, segundo Delap, simplista e evoca o caráter marginalizante do feminismo. "Essa metáfora faz parecer que todas estão fazendo a mesma coisa ao mesmo tempo e que todas as mulheres são a mesma. Negras e indígenas são muito diferentes das brancas, e é perigoso que tentemos falar por elas", afirma a especialista em história de gênero e do feminismo e professora da Universidade de Cambridge.
Em seu livro "Feminismos: Uma História Global" (ed. Compahia das Letras), lançado em fevereiro no Brasil, ela faz a crítica a essa divisão e sugere novas maneiras de olhar o movimento. Traz novos marcos históricos, mostrando, por exemplo, que antes das britânicas, as mulheres de Serra Leoa, na África, já haviam conquistado o voto por meio de sua luta em 1792.
Também cria novas possibilidades para as divisões, de maneira que seja possível olhar para os diferentes aspectos da experiência feminina e evitando cair em objetivos únicos. Elenca oito eixos temáticos: sonhos, ideias, espaços, objetos, visuais, sentimentos, ações e canções. Sobre esse último, ressalta: o Brasil está à frente. Na playlist feminista que Delap criou em um aplicativo de música, Elza Soares é a primeira da lista.
Leia trechos da entrevista abaixo.
UNIVERSA - Por que dividir o feminismo em ondas não é adequado?
Lucy Delap - Há muitos problemas nessa teoria. A ideia de ondas faz parecer que o movimento, a organização da luta, é inevitável, elas apenas vão vir. Mas justiça social não vem à toa, precisa de protestos, esforço. Parece que a passagem do tempo vai trazer, mas não é assim. Tanto que não está trazendo e vemos pessoas conservadoras em relação às discussões de gênero dominando a política, como o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL).
Além disso, a metáfora faz parecer que todo mundo está fazendo a mesma coisa ao mesmo tempo. É muito simplista. Se olharmos bem, as pessoas estão apontando em diferentes direções. Mulheres negras, indígenas, são diferentes das brancas, e juntar tudo em ondas faz parecer que são as mesmas. É perigoso que tentemos falar por elas.
Você citou o presidente do Brasil, o que sabe sobre ele e por que o coloca como um "conservador de gênero"?
A imagem dele já se espalhou pelo mundo como a de um homem que não tem postura, que gosta de melodrama. Para ele, o feminismo é algo populista, que existe apenas para que ele possa rejeitar. É um oponente. Nesses contextos, não podemos desviar nosso olhar do controle sobre o corpo das mulheres, principalmente no que diz respeito ao fundamentalismo cristão.
Voltando ao seu livro: por que a teoria do feminismo é tão baseada na história das mulheres brancas?
Há muitos cânones intelectuais com esse perfil. Toda a história é baseada no liberalismo, tem uma obsessão pelo iluminismo, pela ideia da modernidade, são todas teorias europeias que negam outras perspectivas. O feminismo segue isso.
O marco inicial do feminismo poderia ser a luta pelo direito à terra, contra o 'plantation' [sistema agrícola implantado a partir de mão de obra de pessoas escravizadas entre os séculos 15 e 19]. Ou então ações de mulheres em sociedades africanas.
Não é que o sufragismo não tenha sido importante, mas precisamos de uma perspectiva mais ampla. Feminismo também significa acesso à terra, à saúde, à água, à alfabetização.
Você afirma que o movimento, apesar do discurso de inclusão, também marginaliza pessoas. Como?
Quando falamos de história do feminismo, não é só para celebrar, mas para ser crítico também. Feministas são culpadas por negligenciar mulheres de diferentes origens, ao marginalizar pessoas por raça e classe. As refugiadas, por exemplo, têm uma perspectiva diferente. Em relação às pessoas trans, não é um assunto novo: o mundo sempre teve pessoas que não se identificavam com a normatividade do feminino e do masculino. Mas hoje há mais visibilidade. Ainda assim, muitos movimentos feministas se agarram à ideia de que mulheres só são mulheres se tiverem o corpo de uma mulher. Discordo disso, mas, ainda assim, quero ter essa conversa. Feminismo é diálogo, não é polarização.
Não é contraditório que uma teoria que fale de inclusão seja exclusiva?
Sim. Mas esse é um paradoxo de todo movimento político, que cria isso: os "insiders" e os "outsiders". Infelizmente, isso sempre vai acontecer, ter marginalização, mas quanto mais falarmos sobre isso, melhor conseguiremos resolver alguns problemas. Pode não ter fim, mas precisamos continuar conversando sobre isso. E as redes sociais não são suficientes. Os diálogos na internet são muito agressivos. Precisamos nos encontrar pessoalmente, conversar.
Feministas escutam, até hoje, ataques do tipo "odeiam homens" ou "não depilam a axila". O que pensa sobre esse tipo de reação?
São ataques abusivos e infantis. Mas como feministas, temos que escolher nossas batalhas. Nossa luta é maior do que isso, não vou brigar ao escutar um comentário assim. Prefiro prestar atenção no que realmente importa. Devemos aprender a desviar o olhar disso e focar nas boas histórias. Às brasileiras, uma sugestão seria olhar para o Chile e para Argentina, que são bons exemplos por perto [o Chile se destacou recentemente por aumentar a participação feminina na política, e a Argentina, por descriminalizar o aborto].
Os homens tiveram papel nas conquistas femininas por mais direitos?
Muitos homens aparecem na história, e isso eu conto no livro, para amplificar as vozes femininas. Não foi importante o que eles falaram, mas como abriram caminho para as mulheres. Foram importantes porque tinham poder político e dinheiro, e muitos deles entenderam a necessidade de se fazer justiça de gênero. Não é possível alcançarmos justiça para mulheres sem envolvimento masculino.
É possível dizer que um homem é feminista?
Sinceramente, não é a palavra que importa para mim. Mesmo entre alguns movimentos de mulheres, há alguns que não se identificam como feministas, mas o feminismo deve olhar para eles porque foram importantes. Muitos homens que entrevistei para o livro diziam que não eram feministas, tinham medo de se chamar assim, por pensar que ocupariam um lugar que não deveriam. Mas a ideia é que homens e mulheres estejam de mãos dadas.
Um dos novos eixos que você propõe para o estudo da história feminista é a música. Por quê?
Historicamente, o feminismo é uma inspiração para as pessoas fazerem músicas, filmes, coreografias em vez de atos políticos. Não basta ter slogans, fazer demandas ou protestos. Ser feminista também é cantar. Fiz uma playlist baseada no livro e a primeira música é da Elza Soares. Para mim, ela é uma voz global que representa isso que estou dizendo.
Acredita que chegaremos em um momento em que a igualdade de gênero será alcançada e o feminismo não existirá mais?
Não. O gênero é uma questão enraizada na nossa organização social, e as pessoas continuam fascinadas por esse tipo de divisão em todo o mundo. Enquanto for um conceito tão forte como é e como deve continuar sendo, o mundo continuará seguindo. Além disso, é muito vívido que muita gente se identifique com o feminismo.
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