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Aos 50, mulher se reconhece trans após casamento e 2 filhos: 'Libertador'

Maria Eduarda Henriques, que iniciou processo de transição há 4 anos, com uma das filhas - Reprodução/Instagram
Maria Eduarda Henriques, que iniciou processo de transição há 4 anos, com uma das filhas Imagem: Reprodução/Instagram

Maurício Businari

Colaboração para o UOL, em Santos

11/03/2022 04h00

Aos 54 anos, Maria Eduarda Henriques se considera uma mulher a caminho da realização pessoal. Depois de viver um longo período na pele de um executivo casado e bem-sucedido, Duda tomou a coragem de assumir-se transgênero e iniciar um processo de transformação, há quatro anos.

A moradora de Santos, no litoral paulista, contou ao UOL que, desde criança, se sentia diferente dos outros meninos, apesar de sua orientação sexual ser a mesma. Ela explica que sempre sentiu atração pelas meninas, mas havia algo que a encantava no universo feminino e com o qual se identificava.

"Eu comecei esse processo de descoberta da minha verdadeira personalidade ainda criança, embora não conseguisse entender bem o que estava acontecendo. Eu me sentia feliz ao vestir, ainda que de forma escondida, as roupas e sapatos da minha mãe e da minha irmã", afirmou. "Eu sempre me senti atraída também pela forma com que as mulheres se comportavam".

Porém, com uma infância vivida durante a ditadura militar, em que os estereótipos de masculinidade eram impostos pela sociedade e, consequentemente, pelas famílias, a possibilidade de buscar informações ou se abrir com alguém sobre o que sentia era improvável.

"Isso fez com que eu fosse me retraindo cada vez mais, me tornando uma pessoa muito tímida. À medida que eu crescia, continuava achando que havia algo errado. Naquela época, já tínhamos a Rogéria e a Roberta Close, figuras tão amadas pelo Brasil, como exemplo do que era possível. Mas o preconceito ainda era muito grande e ainda não se falava em transgêneros. Quando muito, usava-se o termo travesti para se referir a nós".

Na adolescência, o isolamento de Duda só não era maior por causa de sua orientação sexual, mas a timidez dificultava a abordagem das meninas que paquerava. Ela conta que, à noite, se trancava no quarto e rezava para poder se "curar", se livrar desse problema que era sentir-se num corpo que lhe causava estranheza. Tudo era registrado num diário, hábito que mantém até hoje.

Maria Eduarda escrevia em um diário pensamentos e reflexões sobre o seu processo de transição - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Maria Eduarda escrevia em um diário pensamentos e reflexões sobre o seu processo de transição
Imagem: Arquivo Pessoal

Aos 24 anos, Duda conheceu a mulher de sua vida, que foi sua esposa por 27 anos e com quem teve dois filhos. Formada em engenharia química, passou a trabalhar para grandes corporações, assumindo importantes cargos executivos.

Durante o casamento, fui me expondo aos poucos para a minha esposa. Quando nossos filhos nasceram, ela já sabia da minha condição. Ela era médica; foi ela quem me disse pela primeira vez que eu era uma mulher transgênero. Mas, depois de um tempo, ela passou a não tolerar mais a nossa convivência.
Maria Eduarda Henriques, livre

Aos 50 anos, após separação da esposa, tomou a coragem e, amparada por um psiquiatra e uma psicóloga, decidiu assumir sua verdadeira essência. O ano era 2017. "Quando a gente finalmente se descobre, é libertador. Não queria mais me esconder, viver aquela vergonha, aquela tristeza de antes".

Apoio total da família

Ao contrário do que imaginava, a recepção da família foi positiva. A mãe, de 80 anos, ao saber da condição da filha a abraçou e disse que não importava como ela seria por fora. "Ela me disse que me amaria do jeito que eu fosse". Com a filha, Helena, à época com 19 anos, construiu pontes e laços de confiança que as tornaram ainda mais próximas.

"Foi num domingo que ela falou comigo. A gente se sentou no tapete do meu quarto e ela começou a me contar o que estava acontecendo", lembra a publicitária Helena Sammarone Henriques.

Eu já era voltada às causas sociais, às causas LGBTQIA+ e tinha vários amigos que pertenciam a essas comunidades. Havia uma preocupação com o futuro dela, claro, por causa do preconceito da sociedade. Mas quando a gente ama uma pessoa, essas questões de gênero se tornam um mero detalhe.
Helena Sammarone, filha de Duda

duda - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

O amor do filho mais novo, jovem com síndrome de Down, também foi suficiente para vencer as barreiras que a transformação poderia erguer entre os dois. "Com a ajuda de um psicólogo, ele foi entendendo a transformação que eu tinha iniciado. Ao fim, nosso amor venceu".

Reposicionamento profissional

Duda teve que se reinventar tanto pessoal quanto profissionalmente. Ela conta que, por causa da transição, enfrentou sérias dificuldades em retornar ao mercado de trabalho. Na área da engenharia química, diz, as portas se fecharam para ela.

Ela então decidiu aprender novas habilidades e se tornou designer e artista plástica. Com a ajuda de Helena, criou uma empresa que se dedica à venda de joias personalizadas, caleidoscópios e roupas com estampas especiais.

Em um site pessoal e pelas redes sociais, mãe e filha expõem e comercializam os produtos, batem papo sobre diversidade com os seguidores e ainda contam um pouco da história de transformação e superação de Duda.

Não está sendo fácil essa reinvenção, mas eu posso dizer que, apesar de tudo, tive muita sorte. A maioria das mulheres trans que conheço tem vidas e histórias muito mais difíceis. Hoje agradeço à Duda do passado por ter tornado a vida da Duda do presente possível.