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'Fui a primeira mulher a cantar funk e meu cachê era o menor de todos'

MC Cacau foi lançada pela Furacão 2000 em 1994 - Arquivo pessoal
MC Cacau foi lançada pela Furacão 2000 em 1994 Imagem: Arquivo pessoal

MC Cacau, em depoimento a André Aram

Colaboração para Universa

12/03/2022 16h39

"Nasci na Bahia e vim para o Rio de Janeiro aos 5 anos com os meus pais e sete irmãos em busca de uma vida melhor. Fomos morar em uma comunidade no município de Duque de Caxias. Nossa casa era muito humilde, não tinha guarda-roupa, cama, televisão e nem sofá, só tínhamos fogão e geladeira.

Eu não tinha uniforme e nem material escolar —cansei de pedir dinheiro para as pessoas no centro da cidade para comprar essas coisas para mim e minhas irmãs. Minha mãe trabalhou durante muitos anos como empregada doméstica em casas de artistas como Lulu Santos, Elba Ramalho e Gabriel O Pensador.

Fui mãe aos 15 anos e nessa idade eu já trabalhava como costureira em uma fábrica, mas a música veio dois anos depois, quando venci um concurso de rap sendo a única menina da competição. Participei de alguns bailes, e logo depois, em 1994, a Furacão 2000 me lançou como MC (mestre de cerimônia).

Eu fui a primeira mulher a cantar funk, naquele tempo só havia homens, e fui bem recebida, não sofri preconceito em um meio dominado por eles. Na época, não tinha muita divulgação, não tinha internet, e nós precisávamos fazer muitos shows para juntar um dinheiro. Eu não conheço nenhum MC que tenha ficado rico daquele período; hoje muitos estão endinheirados, mas no meu tempo não era assim.

Lembro que eu era louca para ter uma bicicleta e, quando ganhei meu primeiro cachê, fui numa loja comprá-la, mas não tinha do meu tamanho e levei uma menor mesmo, porque o meu sonho era ter uma. Hoje, os MCs compram carros de R$ 200 mil. Então, larguei a costura e me dediquei à música, abrindo as portas depois para outras mulheres no funk, como MC Pink e Tati Quebra Barraco em 1999. Embora muitos pensem que a maternidade atrapalhou a minha carreira, isso não aconteceu.

MC Cacau - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
MC Cacau: "Fui mãe aos 15 anos e já trabalhava como costureira em uma fábrica. A música veio dois anos depois, quando venci um concurso de rap sendo a única menina da competição"
Imagem: Arquivo pessoal

Aos 18 anos, já estava fazendo shows em vários lugares, mas o cachê dos MCs homens era sempre muito mais alto do que o meu, e os meus shows não eram menores de público. Preconceito? Talvez. Outro momento parecido, mas dessa vez com o funk, aconteceu quando fiz um show em Niterói (RJ) transmitido pela TV. Eram vários artistas reunidos, como Chitãozinho e Xororó, Zezé DiCamargo e Luciano, Claudinho e Buchecha, Elymar Santos, entre outros.

Alguém faltou e os organizadores me chamaram para substituir. Mas, por ser funkeira, ouvi deles que eu não iria levantar aquele público e por isso não iriam transmitir minha apresentação, as câmeras seriam desligadas. Só que quando subi no palco, havia mais de 30 mil pessoas, todos cantando comigo, chorei de emoção.

Depois, o Elymar Santos foi até o camarim e me disse: 'Não chore, se você está aqui é porque você merece'. Então, houve preconceito sim, era uma mulher, funkeira num show com artistas de outros estilos musicais.

MC Cacau - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
"Hoje, os MCs compram carros de R$ 200 mil, na nossa época deu pra comprar uma bicicleta", diz MC Cacau
Imagem: Arquivo pessoal

Na época fiz shows em Minas Gerais, Espírito Santo, Ceará, Bahia, São Paulo, e também fazia muitas apresentações nas comunidades cariocas. Amava cantar para esse público que não podia pagar um ingresso caro, é ali que faço questão de estar. Aliás, por ser a primeira MC mulher, a pergunta que mais ouço é se já sofri assédio: não me lembro de ter sofrido, eu era bem protegida pelo empresário, mas sei que essas situações existem.

No final dos anos 1990, o funk melody deu uma caída, os shows ficaram fracos e eu precisava trabalhar, tinha a escola da minha filha para pagar e outras despesas, então fui entregar panfletos de supermercado de porta em porta na Barra da Tijuca e outros lugares. Nos finais de semana fazia show quando surgia algum.

Eu precisava muito daquele dinheiro, às vezes as pessoas me reconheciam, havia pessoas que ficavam tristes por me ver naquela situação, mas sempre gostei de trabalhar e lidei muito bem com isso. Eu cantava, brincava, sorria, chorava, enquanto entregava os folhetos. Isso durou quase dois anos.

MC Cacau - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
MC Cacau e MC Marcinho
Imagem: Arquivo pessoal

As pessoas acham que a depressão que eu tive foi por causa desse declínio na minha carreira, mas não foi; a depressão aconteceu anos depois (em 2006), e foi por abandono, entre outras coisas. Eu namorei o MC Marcinho por volta de 1994, mas não deu certo e terminamos. Ele se casou, eu também, e muitos anos depois nós voltamos —o meu filho caçula é dessa relação—, mas nos separamos quando o bebê tinha apenas 1 ano. Me senti muito sozinha e abandonada.

Inclusive as pessoas acham que a música 'Glamourosa' foi feita em minha homenagem, mas não, ele compôs para a [empresária da música, conhecida como 'a mãe loira do funk] Verônica Costa. Eu entregava panfleto na Barra na época onde ela morava, e mostrei a música a pedido dele, mas ela não deu muita atenção. Logo depois, a canção fez sucesso.

MC Cacau - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
MC Cacau com os filhos: "Há pouco tempo uma das minhas filhas foi fazer um intercâmbio na Irlanda. O funk realiza sonhos"
Imagem: Arquivo pessoal

Ao longo de 11 anos, tomei remédios, fiz terapia, pensei em suicídio várias vezes, foi horrível. Após ter me tornado mãe, engordei e precisava fazer algo para me deixar de pé, para superar a depressão. Como sempre gostei de musculação, comecei a malhar muito, e fui me levantando a cada dia; a musculação foi uma terapia na minha vida.

Na época, os shows continuavam fracos, fiz um curso de cabeleireira, fui trabalhar em um salão e fazia show quando aparecia, mas chegou um momento em que as coisas melhoraram e não dava mais para conciliar, então eu escolhi o funk novamente.

Vou fazer 48 anos, sou mãe de 3 filhos, fui avó aos 34, e tenho 3 netos; são 27 anos de funk. Mesmo sendo a primeira MC mulher não me sinto valorizada, não tenho empresário, não tenho verba, porque hoje é preciso muito dinheiro para divulgar. Se você não é verificado no Instagram, eles não falam de você, não te marcam, não curtem o seu som, não postam a sua foto.

Mas não vou desistir e se tiver que trabalhar novamente de carteira assinada em qualquer outro segmento, eu tô pronta.

Vim da favela e sou muito grata ao funk, porque ele me deu tudo quando eu não tinha nada. Pude comprar roupas e móveis que não tínhamos, arrendei uma casa maior, pude dar educação particular para os meus três filhos e nunca mais passei necessidade na vida.

Há pouco tempo uma das minhas filhas foi fazer um intercâmbio na Irlanda. O funk me proporcionou isso. O funk é isso: elerealiza sonhos."

Claudia Mendes dos Santos, a Mc Cacau, tem 48 anos e foi integrante do Furacão 2000.