Quatro anos sem Marielle: 'Me acolho na minha fé', diz mãe da vereadora
Neste dia 14 de março, completam-se quatro anos da morte da vereadora Marielle Franco e do motorista da parlamentar, Anderson Gomes. Desde então, instituições, família e pessoas influentes seguem na cobrança para que as investigações sobre a motivação e a identificação de quem mandou matá-la continuem caminhando. Para a advogada Marinete da Silva, 70 anos, mãe de Marielle, além da frustração do crime não solucionado, a dor de não receber um telefonema diário da filha não passa. "Como mãe, não dá para mensurar essa falta dela", conta, em entrevista para Universa.
Marinete conta que, para "se manter útil e viva", segue na advocacia, cível e previdenciária. Também se mobiliza com grupos em defesa de Direitos Humanos para buscar e dar acolhimento a quem, como ela, luta para que a justiça seja alcançada. Ela classifica o caso de Marielle como "emblemático". Ainda assim, explica que não sabe quando se chegará às respostas que elucidam o crime.
Para valorizar a memória e o legado da filha, Marinete fundou ao lado da família, no mesmo ano em que aconteceu o crime, o Instituto Marielle Franco. Anielle Franco, irmã de Marielle e colunista de Ecoa, no UOL, é a diretora da instituição.
Na última semana, a família, representantes do mandato da vereadora Mônica Benício (PSOL, ex-companheira de Marielle) e de entidades como a Coalizão Negra por Direitos e a Anistia Internacional realizaram uma reunião com o delegado Alexandre Herdy. Ele é a quinta pessoa da instituição policial que assume a frente das diligências. O grupo quer que a polícia não perca "o fio da meada" do caso, diz Marinete.
Lidar com a dor de viver dia após dia sem a filha, explica a advogada, só é possível por ter fé. Para Universa, ela conta que padres amigos a acolhem em momentos de angústia. Uma delas é a de estar sem respostas para "quem mandou matar e por quê" Marielle, quinta vereadora mais eleita do Rio em 2018, e uma mulher na política que defendia Direitos Humanos e "os menos favorecidos", conta a mãe. A seguir, veja os principais trechos da entrevista.
UNIVERSA O que a faz se lembrar de Marielle no dia a dia?
MARINETE DA SILVA A postura dela como filha era única. Sinto falta de, em todos os lugares que ela ia, via algo com que eu poderia me identificar e trazia para mim. Sempre fomos muito ligadas, ela não passava um dia sem telefonar e dar notícias, sinto falta dela também como amiga.
Marielle estava comigo na igreja, na missa dominical. Tinha um olhar diferente para nós, a família, a humanidade que ela tinha não era só para as pessoas de fora. Assumiu responsabilidades muito cedo, primeiro, em casa e com Anielle, depois, com a filha.
Como mãe, não dá para mensurar essa falta dela. Hoje, ela é um ser de muita luz e traz uma referência muito boa para quem pensa nela.
O que diria às pessoas que desrespeitam a memória de sua filha?
Quem faz isso não conhece o pai, a mãe de Marielle. A história dela. Há muita maldade contra ela, e hoje vivemos, além de uma polarização [de ideias], uma falta de respeito com o ser humano. Infelizmente, pessoas que acolhem os menos favorecidos, como fazia minha filha, vão ser atacadas todos os dias.
Não me atingem tanto esses ataques, mas dói ver que não sabem que ela foi convidada para ser candidata depois de dez anos fazendo um ativismo presente dentro da Alerj (a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). Quem quer acabar com a memória dela de várias maneiras é criminoso. E há ainda o fato de ela não estar aqui para se defender.
Em seu texto no livro "Cartas para Marielle", a senhora fala que "dor é substantivo feminino". Como e quem a acolhe nessa dor?
Meu acolhimento está em me manter na fé. A rede de apoio de mulheres que tenho também, aos 70 anos: tenho minhas irmãs, em João Pessoa, as esposas de policiais que eram defendidos por Marielle também me dão apoio.
Eu já era idosa quando perdi minha filha. Isso foi muito mais doloroso... Por isso, a fraternidade das pessoas é o que me sustenta. Mas o maior acolhimento vem da minha fé mesmo.
No mesmo texto, a senhora define a morte de Marielle como "a maior tragédia da minha vida e um divisor de águas na democracia brasileira". Como lidar com essas duas dimensões?
Há quatro anos vivo isso. Gerei, criei e formei uma filha e é muito difícil ter sido surpreendida com o que aconteceu. Vivo com a angústia de não saber quem foi que mandou matar e por quê. Fico pensando que não vejo motivos para isso ter acontecido, o que ela fazia, já fazia há dez anos na secretaria de Direitos Humanos da Alerj. Entendo que ela chegou com mais força ali, por ter sido eleita com a votação que teve, trazendo mudanças na estrutura da casa parlamentar, gerenciada por uma maioria de homens, brancos. Mas isso me deixa triste.
Marielle se tornou um símbolo no mundo inteiro de resistência, principalmente depois do que aconteceu, muito mais, para as mulheres e as minorias. Mas isso acontece numa democracia que não existe.
Como falar de democracia com uma mulher parlamentar assassinada como minha filha foi? Que Estado Democrático é esse?
Precisamos de mudança. Porque não é só minha filha. As pessoas estão sendo atacadas todos os dias. Veja o que esse cidadão [o deputado estadual de São Paulo Arthur do Val] falou das ucranianas.
Há hoje uma falta de compromisso do poder público com as mulheres, com todas as pessoas. Acho que podemos mudar isso, sim. Por isso acho que a gente precisa de uma dimensão maior da democracia, dentro desse 'desgoverno' em que estamos.
A família esteve na semana passada com o delegado de Homicídios do Rio, Alexandre Herdy, que assumiu o caso. Qual foi o objetivo do encontro?
Criar vínculo para que tenhamos informações sobre novidades em relação ao processo. Também queríamos saber o que pode ter de prejuízo na mudança, porque uma investigação nesse nível precisa de continuidade.
Esse é um processo emblemático, os delegados Daniel Rosa, Moisés Santana [que estiveram à frente, respectivamente, entre 2019 e 2020 e entre 2020 e 2021] fizeram esse elo com a gente. Espero que continue com essa dinâmica, porque mesmo com toda a projeção, que deveria ser para todos os casos, aliás, precisamos estar na cobrança.
Qual é seu envolvimento no Instituto Marielle Franco?
O Instituto ganhou proporção a partir de eu ter criado uma associação para manter a memória da minha filha. Ele é composto por mim, Anielle, irmã e comadre dela, Toinho [Antonio Francisco da Silva Neto, pai de Anielle e Marielle] e Luyara [Santos, filha de Marielle]. Muita gente dizia "Marielle presente", mas ela não está; só na memória, no respeito.
Com a apropriação indevida disso por vários setores da sociedade, achamos por bem criar o Instituto, hoje respeitado no mundo inteiro. É uma responsabilidade que ultrapassa o Brasil, que tem financiadores, ações coletivas com entidades, como a Coalização Negra por Direitos, e a sociedade civil.
Por que a demora para se responder 'por que e quem mandou mandar Marielle'? A senhora faz alguma projeção de quando o crime será solucionado?
O mentor disso tudo deve ser alguém com muito poder. Porque vemos a maneira que o crime foi praticado: Ronnie Lessa [que está preso, acusado de ser um dos executores da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes] não tinha um ganho compatível com a vida dele. Ele ganhava dinheiro matando pessoas, servindo ao Escritório do Crime. Aquilo [a execução de Marielle] foi bem pago.
Não vamos ter respostas sobre o crime de imediato, porque isso não pode ser feito de maneira vulgar e também porque quem está no poder não tem nenhum interesse em nos ajudar.
E não tem como ter expectativa de tempo para solucionar, nem a própria Delegacia de Homicídios nem a família podem ter, porque não há, hoje, base de denúncias dos acusados. Há uma linha de investigação forte, com alguns nomes, mas no processo probatório se perdeu muita coisa, com vazamentos de informações, muita coisa foi descartada.
Este ano está difícil, terá eleições, Copa do Mundo, está acontecendo uma guerra. Estamos vivendo desigualdade acentuada também, na verdade, desde que esse desgoverno está no poder, que não trouxe benefício para ninguém, nem para mim, nem para você, nem para a sociedade.
Lutamos para não federalizar o caso [em maio de 2020, o STF decidiu que as investigações continuariam nas mãos da Justiça do Rio de Janeiro]. Mas ainda não temos nenhuma contribuição ou informação que leve aos mandantes [do assassinato].
Nas entrevistas, a senhora comenta da força que tinha sua mãe, Filomena. Como ela era e de que forma fez você chegar até aqui?
Ela era uma mulher pobre, de Alagoa Grande, que tinha um entendimento político. Foi a João Pessoa para tentar dar uma vida digna aos 11 filhos. A gente vem dessa ancestralidade, minha mãe e minha avó tinham a visão de que podíamos estar em lugares mais do que elas estiveram.
Sou advogada há 30 anos no Rio de Janeiro e continuamos nos apoiando, minhas irmãs, minhas filhas, minhas netas. Porque eu mesma também já sofri muito crime de racismo na profissão. Hoje me aposentei e continuo atuando na área cível e previdenciária. Até porque ganho pouco. Mas também é uma forma de me sentir útil, viva, de estar com as pessoas. Se eu estivesse parada em casa, seria mais difícil, eu não estaria bem, entre aspas, como estou. Não estaria falando com você.
O que sente ao ver o legado de sua filha, como a existência das "sementes de Marielle"?
Ver quem se identifica com a história e com o recado de Marielle de que "mulher tem que estar onde quiser" nos enriquece no processo democrático. Marielle lutou para assumir um lugar que não foi feito para a mulher, principalmente, para a mulher negra. Ela era aguerrida, compromissada com as causas LGBTQIA+, atuava em várias frentes, muitas vezes, ouvindo piada por rebater o sistema.
Ver o legado dela não faz com que eu fique feliz, mas com mais esperança para honrar a história que ela deixou.
Sinto que é um divisor de águas porque existe um mundo antes e depois da minha filha. Não queria que o mundo inteiro tivesse voltado a atenção depois que ela se foi. Recentemente, por exemplo, Anielle foi convidada para participar da cerimônia de posse do presidente do Chile, Gabriel Boric. Mas, o que queria era ver todos os louros que vêm para mim e para ela com a minha filha, Marielle, viva.
Assista ao vídeo produzido por Universa em 2019, um ano após a morte de Marielle, sobre como rosto de vereadora virou sinônimo de luta. "Do Crime ao Ícone":
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