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Ela criou robô que expõe disparidade salarial entre homens e mulheres

O casal Francesca Lawson e Ali Fensome, de Manchester (Inglaterra), criou um dispositivo para chamar a atenção para as diferenças salariais entre homens e mulheres - Arquivo pessoal
O casal Francesca Lawson e Ali Fensome, de Manchester (Inglaterra), criou um dispositivo para chamar a atenção para as diferenças salariais entre homens e mulheres Imagem: Arquivo pessoal

Lígia Nogueira

Colaboração para Universa

17/03/2022 04h00

Todos os anos, a situação se repete: no mês de março, as empresas lançam campanhas de incentivo e empoderamento das mulheres, mas muitas dessas ações não passam de puro marketing nas redes sociais. Enquanto muitas companhias bradam contra a desigualdade em seus perfis na internet, na prática acabam por perpetuá-las em seus próprios locais de trabalho.

Pensando em uma maneira de responsabilizar as empresas pela desigualdade dentro de suas organizações, a gerente de mídia social inglesa Francesca Lawson, 27, criou um robô no Twitter para expor as companhias que fizeram posts sobre o Dia da Mulher, mas pagam mais para os seus funcionários homens. No final do dia 8 de março, o @PayGapApp havia viralizado, e algumas empresas chegaram a excluir os posts e bloquear o perfil. Hoje, a conta contabiliza mais de 250 mil seguidores.

Por meio da conta Gender Pay Gap Bot (bot da diferença salarial entre gêneros, em tradução livre), o mecanismo verifica os perfis das empresas na rede social em busca de homenagens ao Dia Internacional da Mulher e depois as compara com as informações disponibilizadas pelo governo do Reino Unido, que desde 2017 exige que as organizações com mais de 250 funcionários apresentem relatórios anuais sobre as diferenças salariais entre funcionários de cada gênero com base nos dados da folha de pagamento.

App Pay Gap - Reprodução/ Twitter - Reprodução/ Twitter
Pay Gap App
Imagem: Reprodução/ Twitter

Para se ter uma ideia, em 2020, a diferença salarial entre homens e mulheres no Reino Unido era de 15,5%, de acordo com o Office for National Statistics. Isso significa que as mulheres ganhavam, em média, 84,5% do que os homens faturavam.

A iniciativa foi colocada em prática por Francesca e seu parceiro, Ali Fensome, que é desenvolvedor de software. "Esbocei uma ideia de como colocar os dados das disparidades salariais de volta aos holofotes, e ele tinha o conhecimento técnico para dar vida a isso", conta ela, em entrevista por e-mail a Universa. Leia a seguir.

UNIVERSA - Como surgiu a ideia de criar o bot que verifica os perfis das empresas no Twitter?
Francesca Lawson - Todos os anos, no Dia Internacional da Mulher, as empresas lançam campanhas sobre "empoderamento", "inspiração" e "celebração", mas suas palavras de apoio raramente são acompanhadas por ações. Queríamos destacar isso exibindo os dados de disparidade salarial das empresas ao lado de suas postagens para que seus funcionários e o público pudessem responsabilizá-las pela desigualdade dentro de suas organizações.

Vocês se surpreenderam com a quantidade de empresas que fazem campanhas contra a desigualdade, mas na prática não promovem ações para mudar o cenário atual?
Para mim, não foi nada surpreendente. Trabalho com marketing, então já estive em situações em que a gerência queria que eu promovesse coisas que eu sei que não são verdade --não apenas para o Dia Internacional da Mulher, mas também para o Mês do Orgulho [LGBT, em junho] e o Mês da História Negra [outubro].

Vocês pretendem usar o bot em outras datas ao longo do ano?
Adoraríamos poder usá-lo para responsabilizar as empresas por seu apoio ao Mês do Orgulho e da História Negra, mas ainda não temos os dados para fazer isso. Sempre que os dados estiverem disponíveis, voltaremos a aplicar a mesma tecnologia em outras datas e outras questões.

Acha que a base de dados do Reino Unido pode melhorar de alguma forma?
Atualmente, os dados do Reino Unido são limitados a gênero, mas sabemos que as desigualdades também se manifestam por outros motivos, como raça, sexualidade e deficiência.

O governo do Reino Unido precisa estender os regulamentos para exigir que as empresas relatem suas diferenças salariais por etnia, para que possamos quantificar o efeito do preconceito racial e começar a trabalhar para acabar com ele.

Vocês pretendem fazer alguma coisa com os resultados que conseguiram depois do Dia Internacional da Mulher?
Queremos manter as empresas responsáveis ao longo do ano e seguir com a pressão para que elas comecem a implementar mudanças. Ainda estamos trabalhando na melhor maneira de fazer isso --tivemos uma semana muito mais movimentada do que esperávamos, mas vamos decidir nosso próximo passo em breve.

Além da disparidade salarial entre homens e mulheres, quais outras questões de gênero vocês gostariam de abordar?
É claro que a diferença salarial entre homens e mulheres não é a única coisa que impede as mulheres do sucesso. Os direitos femininos estão sob ameaça em todo o mundo --as mulheres não podem votar na Arábia Saudita, as leis de aborto estão ficando mais rígidas nos Estados Unidos e, aqui no Reino Unido, uma em cada cinco mulheres diz que foi agredida sexualmente, mas apenas 1,6% dos relatos de estupro resultam em um suspeito sendo acusado.

Aqui no Brasil, o uso de bots geralmente está relacionado à disseminação de comentários de ódio e fake news nas redes sociais. É possível usar mais a tecnologia para ter um impacto positivo?
Sim, absolutamente. Sei que os bots têm uma reputação bastante negativa, mas acho que mostramos que eles também podem ser um recurso valioso para distribuir informações úteis. A tecnologia de automação não é nefasta em si, e é uma pena que seja frequentemente usada por aqueles que desejam causar danos.

Como você avalia o fato de algumas empresas terem excluído os posts e bloqueado a conta?
Acho que quem bloqueou a conta ou deletou seus posts é bem covarde. Isso mostra que eles estão tentando ignorar o problema para que não enfrentem escrutínio público nem precisem repensar como se comunicam sobre o Dia Internacional da Mulher. Felizmente, pegamos novamente algumas das postagens excluídas quando elas foram republicadas, o que espero ter enviado uma mensagem às empresas de que elas não podem continuar se escondendo dos dados.

Vocês se sentiram ameaçados de alguma forma pelas empresas que não ficaram contentes com a ação?
Felizmente, não tivemos respostas desagradáveis das empresas cujos dados de disparidade salarial de gênero nós tuitamos. Na verdade, estou um pouco desapontada que tantas simplesmente ignoraram nossos tuítes --as empresas perderam a oportunidade de reconhecer o problema e explicar o que estão fazendo (ou planejam fazer) para trabalhar pela paridade de gênero.

Você afirmou querer que os empregadores parem de tratar o Dia Internacional da Mulher como um feriado marcante e comecem a assumir a responsabilidade pelas desigualdades. Acha que será diferente no próximo ano?
Acho que enviamos uma mensagem muito forte aos empregadores de que eles não podem usar eventos de conscientização como o Dia Internacional da Mulher para a publicidade. Espero que eles aprendam com essa experiência e comecem, agora, a implementar políticas para lidar com a desigualdade de gênero, para que no próximo ano as estatísticas de disparidade salarial de gênero não sejam tão chocantes.