Sexo como obrigação e pesadelo com ex: ela relata relação abusiva em livro
As insônias da escritora e roteirista Alessandra De Blasi surgiram no meio da pandemia, mas não tinham relação com o caos sanitário. Aos poucos, ela começou a perceber que a falta de sono estava ligada às lembranças de um relacionamento abusivo do passado. "Do nada, acordava ansiosa às 3h com várias memórias confusas da minha antiga relação, que era um casamento tóxico. Aquilo me aprisionou por um tempo, pois estava sem entender se eram sonhos ou se estava acordada", relembra.
Foi o psicólogo que deu a ideia de passar as cenas que povoavam sua mente para o papel e, a partir disso, Alessandra criou a personagem Berenice, que conduz seu primeiro romance, "Antologia da Desilusão" (publicação independente).
"A concepção da Berenice veio, claro, a partir das minhas experiências, mas também de histórias que ouvi de amigas e até de comentários de pessoas que não me apoiaram. Evitei usar termos como 'relação abusiva' ou 'prisão psicológica', para que o conteúdo fosse o mais próximo do dia a dia das mulheres. É um livro que tem o poder de dialogar com públicos diferentes", afirma a escritora, que se separou há cerca de quatro anos e, atualmente, está namorando.
Na história, a protagonista parece ter tudo aos seus pés e viver em um relacionamento perfeito. Mas, aos poucos, o leitor vai descobrindo que ela vive em uma relação de aparências, em que a submissão ao marido transforma o conto de fadas em um pesadelo.
"Primeiro, vem o desconforto que a gente não sabe muito bem o que é. Depois, entendemos as atitudes veladas e escancaradas de abuso do marido dela, até o ponto em que ela entende que está no fundo do poço e precisa de ajuda. Parece familiar para muitas mulheres, não?", questiona a autora.
Entre as situações veladas da própria vida que inspiraram a história, Alessandra relembra como se sentiu acuada em um evento que foi com o ex-marido, e só compreendeu o incômodo com os textos escritos nas madrugadas insones. "Hoje percebo que eu era um objeto dele. Ele não falava meu nome, me deixava de lado, todos me chamavam de 'a noiva do fulano', e a minha identidade estava indo por água abaixo. Naquela época, só acenava e aceitava, sem questionar."
Um momento que não está no livro, mas que Alessandra tirou novas conclusões com o processo de escrita, foi o de estar cansada por ter que transar com o ex-namorado toda manhã.
"Ele me acordava cedinho para transar. Não chegava com carinho, só queria e pronto. Quando contei a uma amiga, ela me disse para parar de reclamar, pois eu era sortuda de transar todos os dias. Na hora que ouvi isso, fiquei triste e me senti culpada pelo que tinha falado. Na minha cabeça, o problema era eu e não entendia o porquê de não ser feliz com o que vivia", relembra.
"Mas, com as palavras que saíram de mim, entendo as camadas inacessíveis daquela época e que, hoje, estão abertas e eu posso acessar para curar, aos poucos."
Além de escritora, Alessandra trabalhou com o dramaturgo Doc Comparato e escreveu esquetes para o grupo de comédia Porta dos Fundos. Por meio da sua produtora, Alessandra & Frederico, produziu dezenas de vídeos para galerias de arte. Ela revela que a experiência no audiovisual a ajudou bastante na criação dos contos e na forma de amarrar as histórias. "O leitor tem uma visão macro, como se olhasse de cima, com os detalhes bem visíveis", explica.
A autora dá o exemplo em uma passagem que se ocorre poucos momentos antes de a protagonista e seu o noivo se casarem. O casal decidiu trocar pequenas lembranças no dia da cerimônia e, ao receber um buquê de flores, no hotel em que estava se arrumando, o cartão trazia uma mensagem que não tinha nada a ver com o que o noivo escreveria —ou seja, foi escrita por alguém a mando dele. "Vendo a cena, quem acompanha entende que o choro da Berenice não é de emoção, como pensam os familiares dela. As lágrimas são de desespero, pois ela percebe que está fazendo algo errado e não tem como desistir de subir no altar em poucas horas", salienta Alessandra.
No último conto, a primeira pessoa toma conta da escrita, e a autora faz um grande desabafo sobre o que se passou nas páginas anteriores. "Escrever essas memórias foi um processo de cura, sendo bem clichê mesmo", diz. Para Alessandra, além de tratamento com ajuda especializada, mulheres que passaram ou passam por relações abusivas podem se beneficiar da escrita.
"É um ato de tirar o peso das costas e traduzi-lo para algo mais claro de ver. Quem sofre abuso, muitas vezes, não consegue falar. Dessa forma, escrever se torna uma via mais segura e anônima, perfeita para apontar o problema real. Meu grande objetivo, ao lançar esse livro, é trazer um entretenimento construtivo, com qual a mulher possa aprender e ficar alerta ao menor sinal de anulação das suas vontades", afirma ela.
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