'Estamos vivos': nas redes, pessoas trans geram corrente por saúde mental
Nathália Geraldo e Mariana Gonzalez
De Universa, em São Paulo
19/03/2022 16h39
A morte do policial civil e ativista Paulo Vaz, na segunda-feira (14), mobilizou a comunidade LGBTQIA+, especialmente as pessoas trans —na internet, alguns chamaram atenção para ataques transfóbicos que ele sofreu pelas redes sociais principalmente nas últimas horas de vida.
Em luto, o psicólogo e criador de conteúdo Jamil Ribeiro, de Teresina, publicou uma selfie em sua conta do Instagram para reafirmar a visibilidade de pessoas trans. Para ele, é comum homens e mulheres trans terem suas histórias ligadas apenas a notícias tristes, mas pouco se fala da trajetória deles enquanto estão vivos.
Na legenda, Jamil fez um chamado: "Procuram-se fotos de meninos trans vivos". Ele é uma pessoa transmasculina [quem foi designado como mulher ao nascimento, mas que, em sua existência, tem alguma relação com ser homem], não-binário e bissexual.
Homens trans, como o jornalista Caê Vasconcelos, o influenciador Luca Scarpelli e o produtor musical Aqualienn, seguiram a tendência, criando uma "corrente" de fotos deles em momentos felizes.
"A foto é um protesto, porque não queremos ser sempre resistência. Quando vi muitos meninos publicando as fotos deles, me lembrei do início do meu processo de transição também", conta Jamil. "Foi uma ação de visibilidade que partiu da gente, como sempre partiu. Até porque o que sempre parte das pessoas cis é a violência contra nós".
'Procuram-se homens trans vivos': repercussão
Em meio aos sentimentos de solidão e de tristeza pela notícia da morte de Paulo Vaz, Jamil decidiu usar sua rede social para compartilhar como o suicídio do ativista e policial civil o impactou. Ele explica que a publicação não foi pensada para gerar repercussão sobre o caso nem para se tornar uma corrente. Paulo deixou o companheiro Pedro HMC, criador de conteúdo digital; a história do casal foi contada por Universa no ano passado.
A motivação, disse para Universa, era se vincular às pessoas trans que pudessem estar sofrendo com o registro de mais uma perda —segundo dados da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais), de janeiro, o Brasil tem a maior taxa de assassinatos de pessoas trans do mundo. O psicólogo diz que a legenda, "Procuram-se fotos de meninos trans vivos", foi inspirada em uma campanha de outdoors espalhados pelo Ceará, em 2020, na qual uma artista travesti usava os mesmos dizeres e outras variações.
Ver as fotos de homens trans nas redes sociais tem o efeito de conectá-los para dividirem experiências de vida. Também serve para dar atenção à questão da saúde mental de pessoas trans, que nem sempre têm acesso a acompanhamento terapêutico, na opinião de Jamil.
Vale dizer que 86% dos homens trans já tentaram suicídio, de acordo com uma pesquisa publicada em 2020 pelo "Jornal Brasileiro de Psiquiatria". Para Jamil, pessoas trans "não se suicidam, mas são suicidadas", se referindo a um sistema social que afeta diretamente a saúde mental delas [a colunista de Ecoa, do UOL, Marina Mathey escreveu um texto com esse título nesta semana].
A foto foi uma forma simples de mostrar o quanto só nós entendemos nossa dor. Só outro amigo trans saberia como é abrir o celular e ver uma notícia de que um cara igualzinho a nós, que admirávamos, se foi.
Visibilidade e apoio
Jamil explica que está no seu segundo "transversário"; ou seja, faz dois anos que ele começou o processo de transição de gênero. Recém-formado em Psicologia, ele faz atendimentos a pessoas trans de baixa renda e gera conteúdo sobre transgeneridade nas redes sociais.
"Sou o primeiro psicólogo trans formado na Universidade Estadual do Piauí. E isso já diz muito sobre como a gente insere ou não pessoas trans em lugares de visibilidade", conta.
Para ele, os riscos de se viver em uma sociedade transfóbica —ou seja, que persegue e exclui pessoas trans— está justamente na falta de comprometimento das pessoas cisgêneros com a segurança e a existência de quem está na letra "T" do LGBTQIA+.
"O processo de ser trans é solitário, por isso quis criar, com minha foto, uma imagem concreta do que é ser trans. Com mais meninos trans publicando, vimos que estamos vivos. Nós vivemos com medo de apanharmos da sociedade. Somos apagados, suicidados, excluídos e isso pode resultar no que resultou com o Paulo".
Jamil conta que consegue cuidar da saúde mental, como uma pessoa transmasculina, sendo fortalecido pela psicoterapia e pela criação de uma rede de contatos e amigos trans. Mas nem todo mundo tem essa oportunidade. "Estatisticamente, pessoas trans não estão em empregos formais", lamenta.
Toxicidade das redes e a saúde mental
O psicólogo Hamilton Kida, fundador da Rainbow Psicologia, que reúne profissionais de psicologia focados em atender a comunidade LGBTQIA+, acrescenta a importância de se criarem estratégias de cuidado da saúde mental de pessoas trans que estão expostas a níveis de toxicidade nas redes sociais, como o que aconteceu com Paulo Vaz.
"A gente precisa aprender a filtrar o que é importante para nós e, principalmente, dar voz para quem a gente é", analisa. "E perceber aquilo que não está nos trazendo coisas boas. Se não te fez bem, não fique ali. E isso vale para além das redes sociais".
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Caso você esteja sentindo angústia, ansiedade e solidão e perceba ideações suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (Centro de Valorização da Vida) e os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive em feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil. O Mapa Saúde Mental também disponibiliza uma lista de atendimentos psicológico e psiquiátrico, gratuitos, em todo o Brasil, online ou presencial.