Dia Mundial da Síndrome de Down: mães negras falam de racismo e capacitismo
Estima-se que no Brasil a Síndrome de Down apareça em 1 em cada 700 nascimentos, o que totaliza em torno de 270 mil pessoas com Síndrome de Down no país. No mundo, a incidência estimada é de 1 em 1 mil nascidos vivos. A síndrome é uma condição genética causada pela presença de três cromossomos 21 nas células, em vez de dois. Por isso, também é conhecida como Trissomia 21 ou somente T21. Dia 21 de março é Dia Mundial da Síndrome de Down, data escolhida porque graficamente se escreve como 21/3, o que faz alusão à trissomia do 21. É um dia usado para famílias e pessoas com Síndrome de Down se mobilizarem para celebrar a vida das pessoas com a síndrome, trazer conscientização global e para garantir que elas sofram menos os efeitos do capacitismo —preconceito contra pessoas com alguma deficiência.
Mas Gabriela, Camila e Patrícia, mulheres negras e mães de crianças com Síndrome de Down, sofrem com mais um tipo de preconceito. Se você reparar nas ações, propagandas, passeatas e afins relacionadas a T21, verá que dificilmente se vê pessoas negras ali. Por que isso acontece? Porque, no caso pessoas com deficiência e negras, há um duplo preconceito: capacitismo e racismo, o que as deixa invisíveis para a sociedade. Nessa data que serve para fortalecer os direitos e espaço para pessoas com Síndrome de Down, Universa conversou com essas mães para saber como elas enfrentam o dia a dia na luta para que elas e seus filhos sejam vistos.
"Sofremos capacitismo e racismo já na maternidade"
"O Beny nasceu quando eu tinha 28 anos, foi meu primeiro filho. Descobri que ele tinha Síndrome de Down no nascimento, os exames que fiz durante o pré-Natal não acusavam nada.
Beny nasceu com 36 semanas e meia, depois de uma gestação difícil em que fiquei desde os seis meses de cama para segurar o bebê. No parto, ele foi tirado de mim por fórceps, pois estava muito inchado, e como nasceu meio roxinho, também não percebi nada, foi tudo muito rápido. Por ser prematuro, foi direto para UTI. Eu estava exausta e descansei até o dia seguinte, pois sabia que ele estava sendo cuidado.
Na sequência, vieram os médicos e a psicóloga me dar a notícia de que ele tinha características de uma criança com Síndrome de Down e que precisava fazer um exame chamado cariótipo, que confirmou. Em nenhum momento fiquei triste ou nervosa, nem sofri com a notícia. Ele tinha uma cardiopatia e precisava operar, então minha preocupação era que ele sobrevivesse. Fez a operação com 40 dias de vida.
Já sofremos capacitismo e racismo na internação. Ouvia comentários velados de que a manutenção dele era cara. Também era nítida a diferença de atenção que as mães brancas recebiam, os médicos nem olhavam direito para mim. Fomos para casa e ele ficou um ano isolado comigo, parei de trabalhar, tive um problema com a fila de uma cirurgia dele pelo SUS e, mesmo sem internet em casa, consegui 257 mil assinaturas. Só assim o hospital me ligou para agilizar o processo.
Com a gente, é na base da luta e da briga. Imagine que 25% da população brasileira tem algum tipo de deficiência e que a maior parte da população brasileira é negra. Onde essas pessoas estão? À margem, mas quero dar visibilidade a elas.
Depois acabei percebendo que ele não escutava direito e, recentemente, foi diagnosticado com autismo. Além do fator racial, ele é uma criança com deficiências múltiplas. Sou ativista e luto para que mais pessoas negras tenham espaço neste lugar em que só tem branco.
Sou sobrevivente inclusive por ocupar os espaços que ocupo hoje, mas isso tem um custo físico e emocional muito grande. Mas seguimos resistindo." - Gabriela Pereira, 34 anos, estudante de Psicopedagogia e ativista, mãe de Beny, 6 anos, de Sorocaba
"Já está na hora de as pessoas pretas com deficiência aparecerem"
"Cuido do meu filho Bento, de 3 anos, sozinha. O pai desistiu de visitar e ajudar nos gastos. Ele é meu primeiro e único filho. Único porque não aguentaria ter outro, a pressão é muito grande.
Com 23 semanas, a obstetra me deu a notícia e disse que ele era saudável, que estava tudo bem com o coração. Sou professora e sempre estudei muito sobre deficiências por conta de alunos, por isso desconfiei de um ultrassom dele. Estava com 26 semanas de gestação e vi que ele tinha um vão maior entre os dedos. Mas o médico que fez o exame não disse nada.
Bento nasceu prematuro. Quando eu estava na maca, ainda me recuperando da anestesia, uma médica chegou para mim, entregou meu filho de qualquer jeito e disse de maneira fria que alguns traços dele apontavam para Síndrome de Down. O jeito que foi feito acabou comigo, ela me tratou como uma qualquer, sem nenhum acolhimento, eu estava na maca. É como se uma mãe negra valesse menos.
Depois que meu filho foi crescendo comecei a receber olhares e alguns comentários do tipo "tem certeza?", "ele não parece", pois ele tem os olhos mais puxados. Também já ouvi perguntas do tipo "há quanto tempo cuida dele?", como se eu fosse a babá, pois a pele dele é mais clara que a minha.
Onde estão as pessoas com Síndrome de Down negras? Elas moram em comunidades e não estão nas salas de espera.
Eu tenho condições de dar atendimento com plano de saúde e acompanhar de perto a inclusão escolar, mas essa não é a realidade da maioria. Já está mais do que na hora de as pessoas pretas com deficiência aparecerem." - Camila Emerik 43 anos, mãe de Bento, 3, de Nova Friburgo (RJ)
"Não vejo nenhuma representatividade em nenhum lugar"
"Conheci meu marido, Morgan, um francês de pele branca em 2012 e desde o começo quisemos ter filhos. Tentamos por alguns anos -cheguei a engravidar e perder um bebê com 11 semanas de gestação. Depois veio a Sara, hoje com 4 anos.
Ela tem Síndrome de Down e, no primeiro ultrassom que fiz, o médico já falou sobre a translucência nucal. Não sabia o que era, fui para casa, pesquisei sobre o assunto, fiquei muito triste e chorei. Resolvi aguardar mais um pouco e ver outros exames. A médica sugeriu um mais invasivo, só que não quis, eu teria minha filha.
Sara nasceu prematura de 36 semanas e na hora em que a vi rapidamente, já reconheci o formato dos olhos. Mas isso não me abalou. O que me abalou mesmo foi ter feito cesárea e somente ter podido ficar com ela no dia seguinte. No quarto que dividia com outras famílias, todos estavam com seus filhos, menos eu. Quando finalmente Sara chegou e foi para meu colo, sugou meu nariz, ela estava com fome.
Com 17 dias de vida, ela pegou bronquiolite e voltou a ser internada. Até os dois anos da Sara, a gente vivia no hospital. Ela faz tratamento pelo SUS, mas não são todas as terapias necessárias que a gente tem acesso, só consigo oferecer o básico para ela. Recursos para os pais, então nem pensar, não há nenhum tipo de suporte. A maternidade atípica é muito complicada.
Eu também não vejo nenhuma representatividade em nenhum lugar, como rede social ou imprensa, nem nos movimentos, de mães atípicas negras.
A Sara não tem pele escura, os traços dela são de uma pessoa branca e entram várias questões pra mim a partir disso. Uma questão da comunidade negra, por eu ter casado com um homem branco. Racismo chega de maneira velada, mas chega.
Muitas vezes sofri preconceito por ter a cor de pele diferente da dela. Minha filha é inter-racial, ninguém pode questionar minha maternidade preta, mas sempre irão. Agora que estou assumindo meus cabelos brancos, me perguntam se sou avó dela. O preconceito tem diversas facetas e muitas vezes só fui perceber depois." Patrícia Adolpho, 45 anos, artesã, mãe de Sara, 4, de Florianópolis
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