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'A gente não tinha alfabeto para ler situações machistas', diz escritora

Andrea Del Fuego, autora de "A Pediatra" - Celso Koyama
Andrea Del Fuego, autora de "A Pediatra" Imagem: Celso Koyama

Nina Rahe

Colaboração para Universa, de São Paulo

26/03/2022 04h00

Na escrita de "A Pediatra" (Cia. das Letras), Andrea Del Fuego diz ter atingido uma espécie de libido literária, um prazer que viveu de modo tão extremo que só poderia terminar em falta. Publicado no ano passado, quando a escritora precisou realizar uma leitura para o audiobook, ela conta ter chegado a uma outra versão do texto, por causa da dificuldade em ler situações e pensamentos em voz alta.

Isto porque Cecília, a protagonista, é uma pediatra que, além de detestar crianças, não é nada empática e se mostra completamente alheia ao conceito de sororidade. "Falar o que ela está dizendo deu um peso, uma solidão, que minha voz é quase de lamento", conta Andrea.

Decidir abordar tantas questões sobre as mulheres e a maternidade não foi algo completamente consciente, mas o resultado do processo de alguém que escreve "sob a nuvem que paira sobre nós" em um tempo em que o machismo se desconstrói até mesmo para ela própria. "Comecei a ter a dimensão de que a gente está caminhando para um lugar de uma consciência física que não é só proteger o corpo, mas também sua estética, sua intelectualidade, porque o seu trabalho também pode ser invalidado", explica.

Até conseguir publicar seu primeiro livro de contos, inclusive, Andrea diz ter duvidado muito sobre a capacidade que ele -e ela mesma- tinham. "A leitura 20 anos atrás era completamente condescendente, estava na cara que era", lembra. "Mas antes a gente não tinha alfabeto para ler uma situação machista."

Universa: Você chegou a dizer que a ideia de "A Pediatra" foi criar uma narrativa que fosse insuportável no tema, mas sedutora na linguagem. Como foi essa construção?
Andrea Del Fuego: "A Pediatra" é quase um sinal trocado em relação a minha maternidade. Eu tive parto com equipe humanizada, doula e acho que a Cecília não atenderia a mim e a meus telefonemas, com certeza. Poderia ter sido um livro escrito no lugar da mãe, ou na voz da Cacá, que é casada com o Celso, que tem um caso com a Cecília. A gente sabe muito pouco dela, sabemos que o marido arrumou uma amante e se organizou para ficar com as duas praticamente no mesmo bairro, que essa amante estava no parto e suturou sua vagina. Eu queria escrever sobre uma mulher, isso estava claro, e me senti convocada por esse romance. Mas não foi por uma militância de abordar mulheres falando da maternidade, foi uma convocação de linguagem. Queria um livro que não tivesse nenhuma relação com o sublime, e "A Pediatra" é essa mulher da medicina, que detesta criança.

Capa do livro "A Pediatra", da escritora Andrea Del Fuego - Divulgação - Divulgação
Capa do livro "A Pediatra", da escritora Andrea Del Fuego
Imagem: Divulgação

Há ali, no entanto, questões do universo feminino que você julgava importante abordar?
Eu sou muito passional e a militância é um fruto da razão, fruto de uma autonomia e de uma consciência do lugar que você ocupa na sociedade. Óbvio que está ligado às paixões e necessidades da própria existência e há uma materialidade ali de autopreservação.

Acho que vou repetir uma coisa que o Marcelino Freire diz, que é "eu não escrevo sobre a violência, escrevo sob a violência". Sinto a mesmíssima coisa com a minha postura diante dos direitos das mulheres porque escrevo sob essa nuvem que paira sobre nós em 2022, em que as coisas estão estagnadas ao mesmo tempo que caminham. Acho que a desconstrução do machismo acontece em mim também.

Com o [movimento] #metoo, por exemplo, comecei a ter uma dimensão de como a gente estava caminhando para um lugar de uma consciência física que não é só proteger o corpo, mas também sua estética, sua intelectualidade porque o seu trabalho também pode ser invalidado.

Como a medicina entra na pesquisa para este livro?
Sempre gostei da medicina e tinha essa atração em ler sobre doenças. Claro, tinha uma certa hipocondria, mas nos dois anos seguintes ao nascimento do meu filho, eu queria muito ler relatos de parto. Acho que fiquei digerindo a coisa da própria maternidade. Fui uma primigesta tardia, aos 36. Sou casada há 30 anos e foram 20 sem querer ter filhos, mas acho que várias coisinhas foram acontecendo e me sacudindo.

Lembro de fazer uma caminhada que eu estava pensando nos meus livros, o que eu estava escrevendo, e de repente me veio uma sensação de que um livro não é nada e que a coisa mais fulgurante da vida era uma pessoa. Fiquei tão deslumbrada com a possibilidade de fazer uma pessoa que me lembro até hoje da sensação que tive quando pensei.

A maternidade influenciou na sua escrita?
Lembro que fui a um festival literário em Portugal, me sentei com duas autoras e o papo estava muito bom, não acreditava que estava falando sobre literatura de novo. Daí perguntei quando elas tinham voltado a escrever e as duas responderam, ao mesmo tempo, que somente quando os filhos tinham 7 anos. Meu filho não tinha nem 1.

Sei que muitas mulheres conseguem manter um lugar mental no que diz respeito ao que era antes da maternidade, mas eu não consegui, fui completamente hackeada. Que a maternidade fosse exigente não me era nenhum espanto. O que me espantou foi ver que a literatura era tão exigente quanto. E a primeira linha de força já não está ligada a um texto, está ligada àquela criança o tempo todo.

Uma das questões que perpassam o livro é o parto humanizado. Como foi seu parto e pós-parto?
Eu tive só um filho, foi parto normal com horas e diversas intercorrências. Tomei umas três analgesias, ele demorou para descer e precisou da ajuda do vácuo extrator, esse nome horroroso. Lembro que no começo me fechei. Não recebia visitas e não deixei meu pai entrar em casa porque ele tinha acabado de fumar e senti o cheiro do cigarro. Fiquei muito fera, não queria ninguém perto da minha cria. Era inconcebível alguém entrar em casa enquanto eu estava nela, nos meus espaços.

A amamentação foi um dos momentos que entendi que o instinto bate forte. Teve um dia que eu estava tirando leite, e doía muito, mas uma hora engrenou. E quando meu filho terminou de mamar, o rosto dele estava rosado, era um prazer de viver, um suspiro, uma paz e eu senti a mesma coisa. Juro, eu estava drogada de ocitocina. Óbvio que durou alguns minutos, mas foi fundante, aquilo fundou a mãe.

Você romantizou muito a gravidez e a maternidade, ou não?
Romantizei no sentido de que só tinha uma ideia, não tinha a experiência. A diferença vem com necessidades físicas porque a necessidade do filho de mamar é uma necessidade sua de amamentar. Essa simbiose é a maternidade e acho que o puerpério tem uma certa despersonalização e esse lugar pode ser perigoso. Muitas mulheres desenvolvem depressão. Eu tive a sensação de olhar a porta pela qual aquela experiência poderia estar atrás, mas não tive essa sensação que acho que a maioria das mães tem, de se perguntar "quando volta ao normal?".

O puerpério tem uma coisa quase interminável e é quando você está se adaptando. São muitos ajustes ao mesmo tempo e um corpo que estava preenchido e não está mais. É um corpo que você vai se familiarizar com ele outra vez e não estou falando aqui de estética, mas de rajadas hormonais que vão mexer com sono, apetite, humor.

Andrea Del Fuego - Celso Koyama - Celso Koyama
Andrea Del Fuego
Imagem: Celso Koyama

Li que você duvidou muito da capacidade do seu primeiro livro. Acha que essa dúvida veio, de certa forma, por um ambiente que valoriza pouco a escrita feminina?
Eu publico há 20 anos e a leitura 20 anos atrás era completamente condescendente, estava na cara que era. Hoje a gente tem uma certa educação, percebe frases, gestos e tudo está mais visível. Antes a gente não tinha alfabeto para ler uma situação machista e agora nós ficamos mais leitoras dessa situação. Agora, por que será? Será que é porque as mulheres agora também fazem parte dos júris? Será que elas também são curadoras das feiras literárias? Será que estão cada vez mais, com muita competência, sentando nas cadeiras das editoras? Será que tem coincidência? O que será que mudou? Estou me perguntando mesmo.

E qual seria a sua resposta para essa mudança?
Eu acho que a mudança é primeiramente sobre a liberdade. Acho que fazia parte da condescência, no começo, colocar todas as mulheres que escreviam como literatura feminina. Quando o Luiz Ruffato publicou uma antologia sobre mulheres que estavam fazendo a nova literatura brasileira, me lembro de participar de uma mesa que era sobre mulheres escrevendo. Acho que tem uma confusão imensa aí. Mulher é um tema e é repertório, mas não estilo. E literatura é linguagem, não obedece a limites. Nós temos uma língua comum entre todos nós, ou seja, só se pode chamar literatura feita por mulheres de literatura feminina por uma questão social. E nisso fica tudo mais fragilizado ainda porque pode ter uma confusão de julgar como panfletária uma literatura de mulheres que escrevem sobre mulheres em questão que socialmente defendemos.

Você chegou a ter uma coluna respondendo dúvidas sexuais. Como foi?
Vinte anos atrás eu escrevia contos eróticos, meio esquisitos, com realismo mágico. Eu nem tinha intenção de publicar, mas levei uma vez para um colega editor da revista da Rádio 89 FM. Ele propôs que eu escrevesse uma coluna respondendo dúvidas sexuais e me pediu também um pseudônimo. Eu me chamo Andrea Maria de Fátima e a partir daí virei Andrea Del Fuego. Eu respondia as dúvidas, mas só falava besteira porque era uma persona ali dizendo o que pensa e não de um ponto de vista de uma psicóloga, sexóloga, nada disso.

Lembro de alguem perguntando se poderia usar chantily no sexo oral e eu respondi "claro que sim". Mas hoje a hiponga de 40 anos aqui já fica pensando no pH, no desconforto que esse chantilly pode causar depois. Já sou uma mulher de meia idade pensando no conforto, que é o que importa.

Acha que Cecília seria encarada dessa maneira se não fosse mulher?
Quando a gente pensa em uma pediatra mulher, pensa em uma mulher que ame incondicionalmente o seu filho. A gente romantiza demais, idealiza demais, associando o médico a uma espécie de sacerdote com sonhos premonitórios que ajudam os seus e sua tribo. Acontece que o que há é o protocolo de conduta, mas os médicos podem pensar de maneira diferente. Então pensei na confiança da Cecília na ciência porque, atrás dos protocolos, ela poderia ser quem quisesse porque a ciência funcionaria. Então ela não precisa ser a mãezinha na consulta, ela cumpre aquilo com certa eficiência e pronto. Mas se fosse um médico no seu lugar, ele não teria esse aspecto canalha.

Um homem com um amante, é ok. O casamento com questões e que esse homem se apaixonasse pelo filho da amante, nossa, é paternal. A questão com a ciência, a falta de paciência com uma criança, tudo poderia ser visto como eficiência.