'Gastei R$ 20 mil ajudando família afegã a fugir de Cabul para São Paulo'
"Conheci uma família afegã depois de entrar por acaso em uma live, no TikTok, de um rapaz afegão que está vivendo na Malásia. Logo após a retirada das tropas americanas de Cabul e a retomada da cidade pelo Talibã, no ano passado, ele disse que estava extremamente preocupado com sua família, porque já havia tentado tirá-la de lá e não havia conseguido. Eu me sensibilizei com a situação e busquei alternativas para resgatá-los. O esforço valeu apenas e, hoje, os oito componentes dessa família estão a salvo em São Paulo.
Essa história começou no ano passado, quando entrei nessa live de três jovens bonitos. Eu, que não sou besta nem nada, puxei assunto com eles e, logo, viramos amigos. Passei a entrar todos os dias nas lives que eles faziam. E assim meus seguidores afegão foram crescendo. De três amigos, passaram para cinco, dez, 20, mil pessoas, todas muito felizes em conhecer uma brasileira que gostava da cultura delas e não as julgasse como terroristas.
Passei a fazer lives também. Eles sempre apareciam, ensinavam o idioma, cantavam, liam poemas. E o Ramin nunca faltava. Ele entrava e já compartilhava com os amigos. Sempre cantava Ed Sheeran e uma canção de Bollywood.
Essa interação continuou até que um dia ele me pediu ajuda. O Talibã tinha acabado de tomar Cabul, e Ramin queria saber se eu conhecia alguma forma de ajudar a família dele a deixar o país.
Ele disse que já havia tentado com outros países, como Canadá e Alemanha, mas nenhum havia aceitado a família dele. Eu não fazia a menor ideia de como agir. Nunca havia visto Ramin pessoalmente, mas já era meu amigo e sofri com ele.
Chorei três dias e noites, sem parar. Lembro que foi em um domingo, eu tinha marcado de ir ao cinema ver 'Esquadrão Suicida'. Eu não consegui prestar atenção no filme, chorei o tempo todo. Eles não mereciam passar por isso. Chorei pelo sentimento de importência.
Fiquei tão preocupada que decidi ajudar de alguma forma. Entrei em contato com o consulado e o Itamaraty para verificar qual visto nós poderíamos solicitar.
O Itamaraty me pediu um tempo, dizendo que ia criar um visto humanitário para os afegãos e, assim que fosse aprovado pelo governo brasileiro, eu poderia dar entrada na documentação.
Eles não tinham tempo. Então, começamos a buscar alternativas. O primeiro passo foi chegar ao Paquistão porque o consulado brasileiro mais próximo deles ficava lá. Essa foi a parte mais difícil. A fronteira estava fechada. O aeroporto também. Não tinha como sair. Assim que surgiu um voo para o Paquistão, eles partiram. Ficaram lá por aproximadamente três meses.
Eles aguardaram a entrevista para o visto e, depois, a aprovação. Sair do Paquistão foi extremamente difícil. Mesmo com o visto aprovado e com as passagens compradas, eles foram barrados no aeroporto. Me ligaram desesperados pedindo ajuda.
Conversei com o pessoal do aeroporto, enviei a eles meus documentos (RG e CPF) e disse que poderiam liberar a entrada deles no avião, porque eles estavam vindo morar comigo. Só assim para eles conseguirem embarcar.
Foi gasto em torno de R$ 200 mil nessa fuga. Eu ajudei com uns R$ 20 mil. A alternativa que achamos foi vender a casa e carro que eles tinham. Por ser uma família muito grande, e minha casa ser muito pequena, nós pagamos um hotel para eles.
Eles ficaram no hotel durante três dias, e logo depois, foram para um apartamento que havíamos alugado. O apartamento é pequeno para a família, mas, no momento, é o que tem.
A salvadora
Eles dizem o tempo todo que fui um anjo por ter salvado a vida deles. O maior medo que eles tinham era de morrer. Lá no Afeganistão, as mulheres perderam totalmente sua liberdade de ir e vir e de exercer seus trabalhos.
Para trazê-los, comprei briga até com a minha família. Não queriam que eu me envolvesse, me chamaram de louca, desequilibrada. Disseram que eu não tinha noção do perigo que estava correndo, que eu estava trazendo terroristas para a minha casa. Disseram que eu ia matar toda minha família trazendo-os.
Foi nessa parte que eu cansei e bloqueei todo mundo. Estava na casa da minha tia, tinha ido lá para almoçar em um domingo. Sai de lá furiosa, sem almoço. Fui embora a pé, debaixo da chuva. Meu pai inclusive falou que se eles viessem para cá, eu iria para a rua. E eu disse que tudo bem. Que iríamos dormir eu e eles na rua.
A única que não disse nada foi minha irmã. Mas ela achou que eu não seria doida a tal ponto. Depois que a família chegou e eles se conheceram, meu pai entendeu. Hoje somos uma família só.
Adaptação ao Brasil
Acredito que o maior sonho deles era ver a filha se formar em medicina. Ela estava no 4º ano da faculdade e teve que parar por causa da guerra. Eu sempre fui amante de livros, principalmente os que relatam histórias de mulheres muçulmanas que largaram tudo para viver seu sonho. E fiz isso pensando nelas. Nas mulheres da família, porque quero que elas possam estudar, trabalhar, sair para se divertir sem ter medo de serem mortas.
Fiz também pelo bebê. Sou mãe de duas crianças e não consigo imaginar meus filhos em um território em guerra.
Agora, estão se adaptando à nova realidade. Não estão trabalhando. Eles chegaram aqui há um mês. Ainda não sabem o idioma, e isso dificulta muito. Eles estão em um apartamento locado por mim.
A maior necessidade deles no momento é achar alguém disposto a dar a eles um emprego, seja de pedreiro, faxina, lavador de louças em restaurante etc. Um local que aceite que no momento eles só sabem inglês, mas que logo aprenderão o idioma.
Eu acredito que Deus nos colocou no mundo como irmãos, para que tomássemos conta uns dos outros. Não importa nacionalidade, religião, gênero, somos todos iguais. Tudo o que você faz hoje, seja bom ou ruim, um dia voltará para você. Então, pratiquem sempre o bem."
Tamara Milani tem 31 anos e mora em São Paulo
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