Indicado ao Oscar, filme mostra luta de jornal feito por mulheres na Índia
O trabalho da imprensa e a liberdade de expressão enfrentam ameaças no mundo todo. Trabalhar com reportagem, dependendo do lugar onde o profissional estiver e sobre o que ele escrever, pode ser uma atividade bem perigosa. No México, oito jornalistas já foram mortos em 2022. Imagine os desafios colossais de um jornal indiano produzido por mulheres dalits, grupo considerado inferior e excluído do desigual sistema de castas da Índia.
Indicado ao Oscar de 2022, o documentário "Escrevendo com Fogo" (Writing with Fire) conta a história das corajosas jornalistas que, com poucos recursos e enfrentando adversidades de todos os tipos, estão quebrando velhos paradigmas e expondo feridas. Em um país onde o jornalismo é dominado por homens, elas apresentam uma perspectiva feminista da realidade e redefinem o significado da palavra poder.
Dirigido pelo casal Rintu Thomas e Sushmit Ghosh —e disponível nas plataformas digitais para compra e aluguel no Claro Now, iTunes/Apple, Google/YouTube e Vivo Play—, "Escrevendo com Fogo" apresenta a saga do jornal Khabar Lahariya (Ondas de Informação, em português), criado em 2002 em Uttar Pradesh, zona rural da Índia, com níveis endêmicos de violência contra mulheres e dalits. O sistema de castas que divide a sociedade indiana em grupos distintos atualmente é proibido por lei, mas na prática, na maior parte do país, segue valendo.
"Os dalits são considerados tão 'sujos' que não recebem um lugar dentro do sistema de castas", escreve o casal de diretores em um texto distribuído à imprensa. "Eles continuam a suportar formas brutais de opressão e violência em qualquer lugar do país". Segundo os diretores, uma pessoa dalit pode ser linchada simplesmente por cruzar o caminho de uma casta superior.
Embora não apareça em listas de favoritos à estatueta na cerimônia que acontece neste domingo (27), o filme tem causado impacto por onde passa. Com duas premiações no festival Sundance de 2021, "Escrevendo com Fogo", primeiro documentário indiano indicado ao Oscar, já foi selecionado para 100 festivais ao redor do mundo e já acumula mais de uma dezena de prêmios.
Histórias reais de mulheres corajosas
"Escrevendo com Fogo" começa acompanhando um dia normal de trabalho de Meera Devi, repórter e chefe de reportagem do jornal indiano. A pauta do dia é o caso de uma vítima de estupro, da casta dalit, que relata ter sido violentada várias vezes por quatro homens. "Você procurou a polícia?", indaga a jornalista. "A polícia se recusa a instaurar inquérito, nos ameaçaram e agrediram a mim e ao meu marido", responde a mulher.
Logo em seguida, o documentário segue Devi caminhando determinada por ruas caóticas rumo à delegacia local. Lá, ela pede ao delegado explicações sobre o caso, detalha que o marido foi à delegacia cinco vezes, que fez até greve de fome, e questiona por que não foi aberta uma investigação. Sai sem respostas, mas claramente consegue constranger e intimidar os policiais.
"Quando cidadãos clamam por seus direitos, somos nós jornalistas que levamos suas reivindicações aos governos, é assim que se luta por justiça em uma democracia", afirma Devi no filme. Para ela, cabe aos jornalistas usar esse poder com responsabilidade. "Do contrário, a imprensa se torna só mais um negócio qualquer", completa.
Um documentário geralmente foca um caso que se torna o coração da história, explica a diretora indiana, Rintu Thomas. Em "Escrevendo com Fogo" é totalmente diferente. Segundo ela, o filme mostra, pela primeira vez, as histórias reais de mulheres corajosas que desafiaram o sistema e lutaram para escrever seus próprios destinos.
Elas são jornalistas, mas também são mulheres determinadas e era isso que queríamos colocar como o centro do filme.
Rintu Thomas, diretora do documentário
Produzido durante cinco anos, o documentário se concentra no processo de migração do jornal Khabar Lahariya para o digital, após mais de uma década no formato impresso. "Estou morrendo de medo", reclama uma das jornalistas durante uma reunião exibida no filme. "Ainda estou aprendendo o convencional, como vou pular para o digital?", questiona a jovem.
"Nunca usei um telefone celular, nem encosto no aparelho da minha família porque tenho medo de quebrar", desabafa outra repórter da equipe. Elas tiveram de driblar dificuldades de todos os tipos, como não entender os muitos comandos em inglês nos aplicativos do smartphone até o fato de não ter energia elétrica em casa para carregar seus aparelhos. Mas, ainda assim, conseguiram.
Referência em jornalismo digital
Em pouco tempo, o canal do jornal Khabar Lahariya no YouTube se tornou uma referência em jornalismo digital, ultrapassando milhões de visualizações. Para surpresa de muitos, as mulheres dalits estavam utilizando a tecnologia e a internet para amplificar sua voz. O fenômeno chamou a atenção dos diretores do filme.
"Quando a maioria dos jornais impressos do mundo estava se adaptando com dificuldade ao meio digital, estávamos testemunhando as mulheres rurais criarem estratégias para crescer em um cenário de notícias altamente competitivo de 'casta superior', dominado por homens", escreveu o casal de diretores.
Na opinião de Rintu Thomas e Sushmit Ghosh, o jornalismo digital do Khabar Lahariya começou a mudar a maneira como as mulheres dalits são percebidas na sociedade indiana. E tudo isso em meio a um cenário frágil e perigoso: uma Índia em transição, saindo de uma democracia secular e caminhando para um nacionalismo de direita, liderada por um partido majoritário hindu, que tenta reforçar o sistema de castas em todos os aspectos da vida.
Trata-se de uma realidade em que o trabalho das jornalistas torna-se ainda mais fundamental, declaram os diretores do filme. "É quase uma narrativa de Davi versus Golias, porque desafiam forças muito maiores que elas, onde a caneta, ou, neste caso, o celular, se torna mais poderosa do que a espada."
'Dalit ser jornalista era algo inimaginável'
A Índia é um país complexo e as pautas que a equipe de jornalistas do Khabar Lahariya precisa encarar diariamente também são bem diversas. Com foco no noticiário local, em regiões com populações predominantemente da casta dalit, ignoradas pela grande imprensa indiana, as reportagens tratam de problemas como falta de saneamento, energia, corrupção, violência e até roubo de vacas.
Além das dificuldades do exercício do ofício em condições absurdas, em geral, as repórteres do jornal Khabar Lahariya enfrentam ainda a descrença e a oposição da própria família. "Não achei que chegariam a lugar algum, por enquanto estão indo, mas não vão durar muito", declarou no documentário Shivbaran, marido de Meera Devi.
"Na nossa província ser jornalista significa ser homem de casta alta, uma mulher dalit ser jornalista era algo inimaginável", comenta a chefe de reportagem do periódico.
"Por mais de 3 mil anos, tivemos uma hierarquia social que divide a sociedade indiana", analisam os diretores de "Escrevendo com Fogo". Ou seja, uma pessoa é considerada membro da casta em que nasceu e permanece dentro dela até sua morte. "Isso atinge de forma profunda a identidade do indivíduo".
Para o casal de cineastas, as castas, assim como o racismo, é um sistema de exclusão, mas pior, porque é invisível.
"Ao contar esta história [das repórteres do jornal Khabar Lahariya], criamos uma narrativa que permite ao espectador ver o mundo de Meera de dentro, de forma íntima e respeitosa, e experimentar uma história que é tão única quanto universal", finalizam os diretores.
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