Colégio de SP distribuiu vale de 'lipo sem corte' a alunas no Dia da Mulher

O Colégio Anglo Morumbi, instituição de ensino privada de São Paulo, distribuiu a alunas adolescentes um voucher para duas sessões gratuitas de um procedimento estético chamado de "lipo sem corte". A ação ocorreu em 8 de março, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher.

O vale, que vinha acompanhado de um bombom, dava direito também a uma avaliação gratuita na Clínica Virtuosa Vila Andrade. A unidade, aberta em setembro de 2021, fica a pouco mais de dois quilômetros do colégio, na zona oeste da capital paulista.

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Universa conversou com uma estudante de 17 anos que recebeu o voucher ao entrar no colégio. Ela contou que monitores que geralmente medem a temperatura dos alunos para entrar na instituição, e que são funcionários da escola, estavam, naquele dia, distribuindo o brinde às jovens.

Ela diz ter se revoltado com o brinde, também por ter várias amigas com algum grau de transtorno alimentar ou que não se sentem bem com o próprio corpo. "Receber isso no Dia da Mulher foi muito bizarro, deixou todo mundo se sentindo bem mal. Ficamos bem chocadas", disse a garota, que não será identificada por se tratar de menor de idade.

A mãe da estudante também conversou com Universa e contou que se preocupa com a mensagem errada que esse tipo de campanha pode passar para adolescentes. "Foi um tiro no pé porque faz menção a corpos perfeitos com lipo. Ainda se fosse para as mães. Talvez o tratamento seja até bom, mas o nome, a quem se destinou e vindo da escola, a meu ver, está errado."

O Anglo Morumbi confirmou à reportagem que entregou um bombom com o vale da lipo sem corte. Segundo a instituição, a clínica de estética faz parte do "Clube de Vantagens" do colégio, uma rede de estabelecimentos que dão benefícios, como descontos, aos estudantes e seus pais. Além da clínica, o colégio oferece descontos em escolas de idiomas, aplicação de vacinas e outros serviços.

"O objetivo da ação foi presentear as mulheres com um chocolate do colégio, um mimo. Foi uma forma de demonstrar carinho, para que as mulheres da nossa comunidade se sentissem especiais. Tivemos a melhor das intenções. E a empresa [Clínica Virtuosa], uma das várias integrantes do nosso Clube de Vantagens (inclusive muitas dessas empresas são de pais de alunos do colégio), ofereceu o voucher para o que entendemos ser uma massagem/drenagem, e não algo relacionado à promoção da estética ou procedimento estético", afirmou o colégio.

A Clínica Virtuosa Vila Andrade integra uma rede de franquias que pertence à empresa Virtuosa Estética, com sede em Joinville (SC) e com mais de cem unidades no país.

Universa entrou em contato com a unidade da Vila Andrade. Em nota, a empresa dona da marca Virtuosa respondeu que as doações de procedimento avaliativo e "lipo sem corte" foram direcionadas a mães e alunas "como uma forma singela, porém sincera, de presentear e lembrar a importância social das mulheres". Além disso, a Virtuosa Estética frisou que a ação "foi muito bem aceita pela esmagadora maioria das alunas e de suas famílias" apesar de "nem todas serem aptas e dispostas a realizar os procedimentos".

A empresa afirmou ainda que fez a ação "sem qualquer intenção de criar distorções de imagem" e que possui em sua filosofia o empoderamento feminino, "pois demonstra que a mulher pode andar como se sente bem, onde se sente bem e, sobretudo, que pode gerar empregos e renda em um país ainda, lamentavelmente, machista".

Em seu site, a clínica explica que a "lipo sem corte" é um ultrassom focalizado de alta intensidade, "destruindo a célula de gordura", que é eliminada pelo organismo. "É recomendado para pessoas que já praticam exercícios físicos, sendo comum o número de sessões variar de cinco a dez", informa texto publicitário.

Entre os benefícios do procedimento, o estabelecimento lista a modelagem do corpo, diminuição de gordura localizada e redução de medidas.

Campanha pode contribuir com problemas de autoimagem, diz psicóloga

A psicóloga Elânia Francisca, especialista em gênero e sexualidade e mestre em educação sexual, realiza atividades educativas e de consultoria para o público infanto-juvenil. Ela afirma que o voucher entregue pelo colégio passa a mensagem para as alunas de que elas são a aparência que têm, e a estética que elas deveriam ter é de ser mais magra.

"Se uma pessoa estivesse na porta da estação de trem ou metrô oferecendo esse voucher no Dia da Mulher, já seria extremamente problemático. Mas é mais ainda quando é na porta e em parceria com uma escola", diz a psicóloga.

"O papel da escola não é só de ensinar português, matemática, ciências, trazer informações e transmitir conhecimento, mas também de formar crianças e adolescentes com um olhar crítico e que entendam que vivemos em uma sociedade que tem uma estrutura que privilegia certos corpos em detrimento de outros."

A psicóloga afirma que o procedimento pode não ser intrusivo, como alegou o colégio, mas tem uma carga simbólica ao ser oferecido para meninas.

"Fisicamente, o procedimento não vai introduzir nenhum objeto dentro do corpo dessa menina, não vai ter nenhum corte ou nada disso. Mas subjetivamente é colocado para essa menina o desejo de emagrecer, a mensagem de que o corpo dela precisa de um procedimento estético porque ele precisa estar adequado, precisa estar normalizado dentro de um padrão de beleza."

A adolescência, lembra ela, é o momento em que o corpo está mudando muito rápido e em que muitas meninas sofrem com violências gordofóbicas, bullying e pressão estética. "E aí vão lá e oferecem um procedimento estético para uma menina que está tendo várias questões com a sua própria estética. Isso gera um dano intenso na autoestima porque diz diretamente que o corpo dela está inadequado, mas que a escola tem uma parceria que é a solução."

Na resposta enviada à reportagem, o Colégio Anglo Morumbi afirmou que "trabalha diariamente para promover a autoestima e aceitação" das crianças e adolescentes. "Em momento nenhum esse brinde foi pensado com objetivo de incentivar um procedimento estético. Somos e sempre seremos a favor da saúde e bem-estar dos nossos alunos."

Mas, para Francisca, a campanha é ainda pior pelo momento em que foi feita. "O 8 de março é uma data de luta por direitos humanos para mulheres, para refletir o quando fomos e continuamos sendo oprimidas em nossa sociedade. A escola, nesse momento, não produz reflexões sobre o quanto a luta gerou conquistas para essas meninas, mas reproduz uma ideia de que o que vale é a estética que elas têm."

"Se esse bombom com o voucher era uma lembrança, como a escola diz, é na verdade a lembrança de que nós vivemos em uma sociedade que trata as meninas e as mulheres como um objeto que deve ser moldado a partir do desejo masculino."