Preconceito leva pessoas trans a vaquinhas online; de livros a cirurgias
A escritora e atriz Maria Lucas, de 33 anos, diz que sempre trabalhou muito, de performer na noite LGBTQIA+ à assistente de direção. Mesmo assim, as contas não fecham. Sem conseguir acesso à cirurgia de prótese mamária, um direito para quem está em processo de adequação de gênero, ela acaba de lançar uma vaquinha virtual para bancar uma prótese. Somente na plataforma, onde ela pede R$ 9 mil, houve outras 16 campanhas levantadas por pessoas trans --aquelas que não se identificaram com o sexo biológico para realizar cirurgias. Cinco alcançaram seu objetivo.
Segundo o site Benfeitoria, em dez anos Maria Lucas é a primeira mulher trans a criar uma campanha para arrecadar dinheiro com o intuito de colocar silicone. Em outros sites de mesma finalidade, o número de pessoas trans que buscam financiamento para objetivos diversos como compra de computador é expressivo: somente no ano passado, o Abacashi registrou 5 mil projetos ligados a causas trans, de um total de 60 mil. E na busca pela palavra "trans", no Vakinha, Universa encontrou 111 campanhas criadas por este público.
A campanha de Maria Lucas acaba em seis dias. A Universa, a artista diz que assim que terminar a ação, com duração de 60 dias, fará a cirurgia "para ontem".
"Fui violentada sexualmente, expulsa de lugares. Sei que meu corpo incomoda, mas não vou deixar de estar bem comigo mesma por causa de uma sociedade que historicamente violenta corpos de mulheres cis e de mulheres trans", justifica ela, que juntou 79% (R$ 7.080) da meta até esta quarta-feira (30).
Experiência será contada em livro
Essa é a segunda vez que a atriz recorre ao financiamento coletivo para concretizar um sonho. A primeira foi no ano passado, quando precisava de R$ 1,8 mil para editar seu livro, "Esse Sangue Não é de Menstruação, mas de Transfobia" (Ed Urutau). Conseguiu quase o triplo do valor: R$ 5 mil. Ela, que é mestra em Teoria e Crítica de Artes pela ECO da UFRJ (Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro) e graduada em teatro pelo departamento de Letras da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica), relata na obra os preconceitos que vive diariamente:
Passei por muitas situações: já fui expulsa de onde vivia, tentei suicídio e entrei em processo de depressão.
Maria Lucas
A obra já está na segunda edição, com vendas em Portugal e Galícia, na Espanha. Após a cirurgia, ela, que é primeira mulher trans a ganhar o concurso de ensaios da revista "Serrote", do Instituto Moreira Salles, planeja contar a experiência em outro livro, "Gênero, Banheiro, Fast Food e Outros Ensaios".
"Me reconheci mulher aos 3 anos"
Registrada como Lucas ao nascer, Maria verbalizou se reconhecer como uma mulher aos 3 anos. O irmão mais velho, adolescente na época, a mandou "engolir aquela frase" que acabara de ouvir. Nascida e criada na favela da Rocinha, zona sul carioca, se calou então por quase 30 anos.
Mas o processo de terapia hormonal, que serve para bloquear o nível dos hormônios masculinos no corpo, veio há pouco mais de dois anos, inicialmente sem orientação médica --hoje ela é assistida por uma equipe multidisciplinar da Fiocruz, que conta com endocrinologista e psicólogo. E hoje ela tem, inclusive, o apoio da mãe, Maria do Carmo, para seguir em frente.
"A sociedade coloca muito essa divisão binária entre o corpo de homem e o de mulher. O sentimento é o de estar questionando o gênero que nasci. Sinto que preciso [desses seios] por questão artística e estética, além de estar ousando em ser artista, estudada e branca, num meio em que sou impedida de ter oportunidade e dinheiro", afirma ela.
Grupo ajuda pessoas transmasculinas
Foi com o apoio coletivo que em dois anos cerca de 300 pessoas transmasculinas ou não binárias receberam faixas compressoras para esconder os seios. Iniciada primeiramente no Twitter, pelo perfil da ilustradora conhecida como Sapartista, a campanha "Doe um binder, receba arte", está na sua quarta edição bancando o material, que custa R$50 a R$100.
O administrador, analista de dados e artista do projeto Kalel Astre, 22, conta a Universa que é gratificante ver brilho nos olhos de quem é ajudado. Ele, que conseguiu adquirir seu próprio binder com o seu trabalho, contribui em dinheiro e com suas ilustrações para quem doa, como forma de recompensa.
"O sistema de saúde, educação e o mercado de trabalho negligenciam muito as pessoas trans, e excluem a gente de coisas básicas. Quando ocupamos espaço, provamos que podemos chegar lá. Precisamos que nos escutem. Essa equidade é muito importante", ele ressalta.
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