Elas mudaram de carreira após terem filhos autistas: 'Estudei para ajudar'
No dia 2 de abril é comemorado o Dia Mundial da Conscientização do Autismo. De acordo com a ONU, no mundo, 70 milhões de pessoas têm algum nível do espectro e uma pesquisa de 2021 do CDA (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), dos Estados Unidos, afirma que uma em cada 44 crianças com até oito anos é diagnosticada com o transtorno. Mas ainda é pouco o que se sabe e o que se fala sobre o autismo.
Universa aproveitou a data e falou com mulheres que viram suas vidas mudarem completamente após o diagnóstico de membros de sua família. Antônia voltou à faculdade aos 56 anos para saber mais sobre o assunto, Marleide abriu mão de tudo para estar sempre ao lado do filho e Michelli criou uma instituição com cursos livres e pós-graduação para apoiar pais e profissionais da área. Conheça mais sobre elas a seguir:
"Voltei para a faculdade aos 56 anos para estudar pedagogia"
"Aos nove anos, meu neto perdeu a mãe, minha nora. Então, ele e meu filho vieram morar comigo e meu marido. Eu trabalhava na área administrativa de uma escola, mas ao conviver com meu neto fui descobrindo as necessidades dele, inclusive na área da educação.
Aos 56 anos, resolvi voltar a estudar e fui fazer faculdade de pedagogia. Queria descobrir um mundo que, até aquele momento, eu não tinha tido acesso. Além da graduação, fiz duas pós. E hoje trabalho na área, atendendo pacientes com autismo.
Tínhamos demandas que não conseguimos atender e não encontrávamos profissionais especializados ou de qualidade para ajudar no desenvolvimento do Luan. Esse universo da educação tornou-se o amor da minha vida. Me vi em uma área que sempre deveria ter trabalhado mesmo com a mudança radical.
Meu neto tem autismo nível dois e meus estudos influenciaram muito no desenvolvimento dele. Inseri uma rotina em sua vida visando que ele tivesse mais independência. Em algum momento, essas pessoas com autismo também ficam sem família. Ele perdeu a mãe cedo e eu já sou avó.
Continuo buscando cursos e pesquisas para que sempre possa auxiliar no desenvolvimento do Luan. Vivo o autismo 24 horas por dia e, junto com outras mães, montei uma ONG chamada Falando sobre o Autismo, da qual sou presidente, com informações para dar assistência para as famílias e direcionar o olhar deles.
As mães ficam sobrecarregadas e são deixadas de lado. O poder público negligencia a população autista de uma forma assustadora. Vivo atrás de vereadores, as Secretarias da Educação e Saúde atrás de melhorar.
Antes de serem autistas, eles são seres humanos. Meu neto é a minha grande paixão e não sei mais viver sem ele", Antonia Cia, 66 anos, avó do Luan Martins Cia, de 19 anos, de São José dos Pinhais (PR).
"Sentia que profissionais não sabiam responder meus questionamentos"
"Quando estava grávida de cinco meses do meu caçula, descobri que meu primeiro filho tinha autismo. Na época, ele tinha um pouco mais de dois anos e não falava, que foi o primeiro sinal de que algo não estava certo. O diagnóstico foi muito rápido e passamos por vários especialistas para confirmar. Uma semana após a confirmação, ele já estava fazendo terapia.
Eu trabalhava na empresa da minha família, mas parei minha vida para me dedicar e aprender sobre o autismo, meu marido que é advogado também. Eu sentia que os profissionais não sabiam responder nossos questionamentos sobre o transtorno e começamos a sentir uma certa insegurança. Comecei a pesquisar, li livros em inglês e comecei a buscar leituras mais científicas para poder entender mais. Eu vivia o diagnóstico intensamente: não dormia lendo e vendo vídeos sobre o assunto.
Mesmo com profissionais bem recomendados e com as credenciais certas, a gente ainda não sentia confiança. Meu filho chorava muito na terapia e a médica queria levá-lo mesmo assim. Imagina colocar seu filho em uma sala, com uma pessoa que ele mal conhece, enquanto você o escuta chorar do lado de fora? Eu e meu marido queríamos aprender mais para saber se aquela era mesmo a única forma de ajudá-lo.
Entrei na faculdade de pedagogia para me aprofundar sobre o autismo, fiz duas pós-graduações e comecei um mestrado.
Foi um processo duro. Parei de ir a festas, me afastei de amizades. Minha vida era aprender sobre autismo. Estudei tanto que, a um certo ponto, eu comecei a atender as crianças.
Para atuar na área de autismo você precisa entender de desenvolvimento infantil nas mais diversas frentes. Eu queria entender qual seria a melhor intervenção, que tivesse mais evidência científica, para o desenvolvimento dele. Algumas pessoas começaram a me pedir ajuda, indicações de livros, informações e, em 2015, comecei uma página no Facebook para dividir esses conhecimentos que eu tinha adquirido. E como uma pessoa que nasceu em uma família empreendedora, comecei a vender treinamentos onlines para profissionais da área a pais.
Todo esse estudo impactou muito o desenvolvimento do meu filho. Hoje sou eu quem organiza todas as intervenções dele. Ele tem terapeutas, mas eu tenho clareza científica para identificar a qualidade do trabalho. Foi uma libertação. Hoje somos donos da nossa própria história e vemos os resultados acontecendo na nossa frente.
Eu e meu marido, depois de tanto estudo, fizemos carreira nessa área. Criamos uma instituição chamada Instituto de Educação e Análise do Comportamento focada em treinar profissionais e pais de crianças com autismo. Temos cursos livres e, em 2018, passamos a ter pós-graduação e parceria com universidades", Michelli Freitas, 33 anos, mãe de Diogo Filho, 10 anos, de Gôiania (GO).
"Senti que meu filho precisava de 100% da minha dedicação"
"Demorei quatro anos para conseguir o diagnóstico de autismo do meu filho. Hoje ele tem 26 anos e se já é difícil agora, imagina há 20 anos. Naquela época não tínhamos os dispositivos legais e não se falava de inclusão. Quando finalmente um médico me deu o diagnóstico, fiquei feliz, pois conseguiria dar um direcionamento para ele. Mas o prognóstico foi devastador. O médico disse que ele seria analfabeto e incapaz de realizar atividades básicas. Fiquei bem abalada, mas respirei e fiquei determinada de que analfabeto meu filho não seria.
Tivemos experiências horríveis na busca por espaços que o acolhesse. Certa vez, ele agrediu um colega com tanta violência que foi expulso. Quando cheguei em casa e, chorando, perguntei o motivo da agressão, foi a primeira vez que ouvi a voz do meu filho. Tínhamos tido seu diagnóstico a pouco tempo e ele me disse, de forma bem robótica e pesada: 'Minha mãe, não sei. Me ajuda'. Tomei até um susto. Tinha convicção que ele não ia me responder. A partir daí, eu sabia que precisava me anular em prol dele. Apesar de que não considero uma anulação, e sim, a oportunidade de me tornar um ser humano verdadeiro. Passei a viver para o Igor.
Quando descobrimos o diagnóstico dele, eu cursava faculdade de Economia e era revendedora de materiais cirúrgicos, mas parei o curso e deixei meu emprego. Senti que meu filho precisava de 100% da minha dedicação.
Fiz o que pude para estudar sobre assunto. Há 20 anos, não existiam cursos que pudessem ajudar mães, redes de apoio, grupo de mensagens. Fui pesquisando por conta e aprendi aos poucos o que era o autismo do meu filho.
Com a escola, o Igor começou apresentar ecolalia, que é a repetição dos sons. Foi a partir disso que comecei a descobrir o que ele vivia no ambiente escolar. Ele repetia: 'maluco', 'retartado' e 'vou falar com a sua mãe'. Isso acabava comigo. Quando tentei uma escola especializada, ele regrediu, copiando mania dos outros colegas. No fim, encontramos uma escola de verdade que fez um trabalho de alfabetizá-lo. É o direito dele, como cidadão, ter educação. A família tem uma responsabilidade muito grande na educação de um autista. Mas é dever da sociedade e do poder público acolhê-lo.
Quando larguei tudo, fiquei com medo de faltar dinheiro, claro. E faltou. Passamos por um momento de grande dificuldade financeira, a ponto de não conseguirmos pagar a escola por seis meses. Mas a diretora nunca nos pressionou.
Três anos antes de ele se formar na escola, eu tinha voltado a estudar. Retornei à universidade para fazer tecnólogo em petróleo e gás e hoje sou funcionária pública. Naquela época, começamos a frequentar a academia juntos por orientação médica - o colesterol estava muito alto. Na academia, insistiram para que a gente o colocasse na aula de Jiu-jitsu. Eu achava um absurdo e que ia dar errado. Ele tinha estereotipias acentuadas, dificuldade de locomoção motora e aversão ao toque. Como isso ia dar certo? Mas cedemos para que a insistência parasse.
Para minha felicidade, foi um sucesso. Ele começou a ter foco, atenção, concentração, coordenação motora... Fui ver de perto o trabalho que era feito com ele. Tivemos sorte com o professor que arrasou até o pai, que era o ponto de confiança dele para as aulas. Em três anos, ele já era um atleta profissional.
A evolução dele nos esportes nos levou para o mundial em Emirados Árabes. Lá, o Igor competiu no para Jiu-jitsu, onde ele ganhou medalha de prata e no Jiu-jitsu absoluto, que é com pessoas sem deficiência, que ele levou medalha de ouro.
Transformamos nossa dor em luta e hoje influenciamos famílias -recebo muitas mensagens nas redes sociais. Recebemos muitas mensagens de quem está tentando colocar os filhos nos esportes, música e arte. Antes do autismo, precisamos enxergar o ser humano", Marleide Nogueira, 48 anos, mãe do Igor Nogueira, de 26 anos, de Salvador (BA)
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