Após abuso e maus-tratos, ela foi adotada aos 16: 'Começo de novo capítulo'
"Eu tinha 16 anos quando minha mãe adotiva entrou no meu quarto, me acordou e perguntou: 'Você quer morar com a gente?'. Respondi para ela que era o que eu mais queria na vida. Eu desejava muito ter um pai e uma mãe. Quando ela me disse que eu não precisaria mais morar no abrigo foi um alívio. Finalmente tinha chegado a minha vez. Acreditava que as chances de isso acontecer eram grandes, mas me diziam que eu não teria essa oportunidade. Este foi o começo de um novo capítulo da minha história, após anos de muita dor e sofrimento.
Quando eu tinha cinco anos, eu, meus três irmãos e meu pai fomos morar com a minha madrinha depois que meu pai se separou da minha mãe. Nessa época, morávamos em um barraco em um terreno abandonado, sem porta, banheiro ou chuveiro... Não tínhamos nem comida, costumávamos pedir para os vizinhos. Me lembro que eu amava banana e me contentava só com a fruta.
Minha mãe biológica era alcoólatra. Ela ia beber logo cedo e voltava à noite muito bêbada e agressiva. Ela nos agredia com pau, com fio ou qualquer objeto que encontrava em sua frente. Hoje entendo que a culpa é do álcool, mas na época não entendia.
Ficamos com a minha madrinha por dois anos. Aos sete, ela me acordou junto com meus irmãos, aos prantos, mas sem nos dizer o que estava acontecendo. Nos vestiu e nos levou até a cozinha, onde nossas mochilas já estavam organizadas. Toda a minha família estava na sala chorando. Eles se despediram de nós enquanto não entendíamos nada. Meu pai não parava de pedir desculpas.
Entramos em uma perua junto com uma assistente social e, quando o carro saiu, me lembro de pensar: 'Estão nos separando de nossa família'. Tivemos que sair de lá porque meus padrinhos não queriam mais meu pai e a gente morando de favor com eles.
Assédio
Foi assim que começou a minha vida no abrigo. Morei lá dos sete aos 16 anos. No início, meu pai ia nos visitar aos sábados, só não ia quando estava sem dinheiro para a condução. Até os 11 anos me mantive esperançosa de voltar para a minha família, mas depois achei que era o momento de me abrir para a adoção. Houve um episódio bem marcante que me fez tomar essa decisão.
Eu tinha nove anos quando meu pai tentou me tocar. Ele quase conseguiu terminar o que começou. Eu estava de barriga para baixo, dormindo. Ele começou a esfregar o pênis dele em mim. Tenho o sono leve e senti alguma coisa estranha, não sabia se era meu pai ou meu tio.
Quando ele ia penetrar, eu me mexi e acordei. Por isso ele saiu. Mas não falei para ninguém. Ao contrário da minha mãe, meu pai não bebia e nem fumava. Fez o que fez lúcido mesmo. Aos 11, percebi que meu tio, que era irmão do meu pai e da minha madrinha, também tinha comportamentos estranhos com as minhas irmãs.
Nós ainda podíamos visitar nossa família e passar o final de semana na casa da minha madrinha. Eles gostavam de colocá-las no colo, se esfregar nelas, encostar nas partes íntimas. Apesar de tudo, eu ainda tinha ligação com meu pai, mas não aceitei que minhas irmãs passassem pelo mesmo que eu passei. Queria protegê-las, elas nem entendiam ainda o que estava acontecendo.
Contei chorando para a assistente social. Foi quando ela me falou que nunca mais poderíamos voltar à casa da minha madrinha. Ela não o denunciou para a polícia, mas entrou com um processo para que ele perdesse a nossa guarda. A partir de então ele só poderia nos visitar se fosse no abrigo. Ele nem sabia o motivo pelo qual não podia mais ter a nossa guarda, nunca soube da minha denúncia. Ele me perguntava se eu ainda queria morar com ele, que ele ia resolver e pegar a gente de volta, mas eu nem respondia. Ele era meu pai, eu tinha medo de magoá-lo.
Em busca de uma família
A partir daí começou uma busca para que eu e minhas irmãs tivéssemos uma família. Conheci várias e muitas não quiseram me adotar. Passei muitas vezes pela fase de aproximação, que é quando a criança vai passar um tempo com a família disposta a adotá-la. Quando tinha 12 anos, uma delas me disse que estava desistindo porque não queria dividir a herança comigo. Outra tinha uma filha de 21 anos que me levou com ela para furar a orelha. Ao chegar em casa, ela tomou uma bronca da mãe. Depois a mãe disse que não queria me adotar por medo de a filha biológica me levar para o mau caminho.
Todas essas experiências de 'test-drive' eram bem ruins. Eu sofria, me sentia rejeitada, sem valor. Achava que ninguém no mundo me amaria. Me sentia culpada pela dispensa, que o erro só poderia ser meu. Pensava: o que eu tenho de errado para nenhuma família me querer?
Não havia suporte psicológico, ninguém do abrigo me ajudava a entender esse processo. A mãe de uma das famílias que conheci pediu um dia para que eu lavasse a louça, mas eu não queria. Queria brincar. Para me reprimir, tomei um beliscão. De todas as outras famílias que eu tinha conhecido, essa era a única que realmente queria me adotar. Mas o beliscão foi o divisor de águas. Eu não conseguia relevar nenhum tipo de agressão depois do que passei na infância com as agressões da minha mãe biológica. Na minha cabeça, quem agride não ama. A mãe dessa família implorou perdão, ficou do lado de fora da porta do meu quarto querendo conversar. Mas eu não conseguia mais.
Recomeço
Eu sei o começo dessa história pela versão da minha mãe adotiva. Ela não queria ter filhos, mas queria ajudar uma criança. O irmão dela trabalhava próximo ao abrigo e deu a ela o telefone para entrar em contato com a instituição. Ela ligou e falaram sobre mim. Ela aceitou me conhecer e a assistente me avisou que eu ia falar com mais uma família.
Toda vez que isso acontecia eu ficava eufórica. Corri os três andares falando para todo mundo que ia conhecer uma família nova. Conheci minha mãe no refeitório do abrigo e ela já pediu autorização para me levar para a sua casa no final de semana seguinte. Mas a diretora do abrigo falou que eu precisava resolver a história da família do beliscão antes. Liguei para dizer que não iria mais visitá-los. A mãe chorou, implorou para eu voltar. Meu coração doeu, mas não conseguia mais. Desliguei e estava pronta para a próxima.
No dia, entrei no carro com meu pai e com a minha mãe adotivos e já puxei conversa. Quando meu pai me disse que sua cor preferida era azul, como a minha na época, na minha cabeça aquilo já era um sinal de que eles seriam minha família.
Minha mãe fez arroz, feijão, bife e batata frita de almoço. O problema é que eu não como carne. Não gostava. Fiquei morrendo de medo de dizer que não gostava e ela não me querer mais. Já tinha sido devolvida tantas vezes... Mas resolvi arriscar. Falei já preparada pela bronca, mas não aconteceu.
Desde o princípio, minha mãe deixava claro que não tinha intenção de me adotar e que eles não seriam meus pais, só queriam me ajudar. Mas eu não perdia as esperanças. Aos 16 anos recebi a notícia de que eles queriam ficar comigo. A decisão inicial foi do meu pai. Ele não tinha filhos, mas me queria como filha. Foi ele quem fez minha mãe mudar de ideia.
Eu fiquei eufórica com a notícia, mas a adaptação foi complicada. Minha mãe era muito religiosa e, se eu não quisesse ir à igreja e ser evangélica, ela me dizia que a relação não estava dando certo e que iria me devolver. Sempre que eu fazia algo que ela não gostava, escutava isso.
Meu pai me defendia, eles brigavam e ela me culpava pelas brigas também. Até com meus irmãos ela tinha implicâncias. Eu queria vê-los sempre, porque fomos adotados separadamente. Foi difícil construir o vínculo por causa dessas ameaças.
Nesse começo, eu sentia que meu pai me queria mais, que ele se importava comigo. Eu fazia de tudo para ser como ele. Ele era minha inspiração.
Fiz muita terapia e fui entendendo o que passei. Aprendi a olhar para minha mãe de forma diferente e a entender as questões dela. Foi aí que a nossa relação mudou e começamos a nos dar bem. Me casei há dois anos e hoje tenho uma relação ótima com todos. Continuo muito próxima dos meus irmãos biológicos. Eles foram a razão pela qual eu lutei com tanta garra no passado e não vivo sem eles.
Com o meu pai biológico eu converso de vez em quando. Tenho o número do telefone dele e, às vezes, trocamos mensagens por WhatsApp. Mas não o encontro desde que fui adotada. Ele insiste para me ver, mas não acho que é o momento. Meu pai de verdade hoje é o Valdir e a minha mãe, a Marilene.
Quando eu precisei, meu pai biológico não lutou por mim e não me protegeu, pelo contrário. Então eu o deixei para trás. Não quis denunciá-lo e hoje não tenho raiva, mas fico pensando nos motivos que levam um pai a fazer o que ele fez. Estou bem resolvida, mas a experiência me impactou negativamente quando eu tentava fazer sexo na fase adulta. Sofri por anos, chorava muito. Levei para a terapia e hoje não me afeta mais.", Graziele Durand, 29 anos, é psicóloga em São Paulo
Veja abaixo vídeo em que casal mostra os desafios da adoção tardia:
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