Masturbação, menopausa, feminicídio: novelas estão mais feministas?
"Acho que mulher pode fazer maquiagem, ginástica, botox, plástica, o que ela bem entender, desde que seja uma escolha, não uma obrigação". Essa foi uma das últimas falas de Rebeca, personagem de Andréa Beltrão em "Um Lugar Ao Sol", novela que chegou ao fim no último dia 25. Além de etarismo, autoestima, menopausa e masturbação feminina, a trama escrita por Lícia Manzo tratou, ainda, de violência obstétrica, estupro, feminicídio, maternidade compulsória, relações homoafetivas, menstruação e um sem fim de temas considerados femininos.
"Pantanal", embora tenha enredo diferente da novela antecessora, também já deu sinais que está atenta a questões de gênero: em cena exibida na primeira semana, Zé Leôncio (Renato Góes) diz a Madeleine (Bruna Linzmeyer) que ela não tinha condições de consentir uma relação sexual porque havia bebido muito, o que inclusive poderia ser considerado estupro, mas já foi cena comum em vários outros folhetins.
Será que as novelas estão mais antenadas ao avanço das discussões sobre mulheres?
Tudo indica que sim, pelo menos de acordo com especialistas em TV ouvidos por Universa — Cristina Padiglione, jornalista com 30 anos de experiência na cobertura de televisão, e Fernanda Friedrich, roteirista e doutora em Cultura Popular e Estudos de Gênero.
Segundo elas, a tendência não necessariamente é que as novelas continuem abordando temas considerados feministas, mas que tratem todos os temas a partir de um olhar feminino —e isso graças ao aumento de mulheres nas salas de roteiro, nos bastidores das gravações e na autoria das novelas.
"Não acredito que seja uma tendência, mas um reflexo de duas autoras mulheres interessadas nesses assuntos. Tivemos novelas da Glória Perez nesses últimos 20 anos sem discutir nada parecido com a Manuela [Dias, autora de "Amor de Mãe"] e a Lícia [Manzo, Um Lugar Ao Sol]", fala Cristina Padiglione.
Em outras palavras: as mudanças estão nos detalhes. Não necessariamente, por exemplo, a trama precisa discutir a liberdade sexual, mas há mais chances de, daqui para a frente, as cenas de sexo serem gravadas pelo "ponto de vista do prazer feminino", acredita.
"Quando a conversa começa, não para mais"
"Um Lugar Ao Sol" chegou ao fim com uma audiência bem aquém do esperado para o horário nobre, especialmente para a primeira novela inédita depois da pandemia. Os números baixos, no entanto, nada têm a ver com o tom feminista da trama —que, pelo contrário, foi bem recebido pelo público, opina Padiglione.
"Quando soube que a Lícia falaria sobre menopausa, por exemplo, eu que estou na menopausa não dei muita bola. Mas, quando o assunto começou a ser discutido com a personagem, percebi como esse era um tema tão engavetado. Digo isso porque boa parte do machismo está impregnado nas mulheres. Havia uma vergonha de falar desses assuntos. A novela consegue dar voz a isso, incentivar esse debate".
Fernanda Friedrich, pesquisadora, também vê nessas novelas um pontapé para novas discussões que vão além da televisão.
Ela trabalha como roteirista em uma emissora canadense e conta que, nos Estados Unidos, há décadas pesquisadores produzem relatórios sobre a representatividade de mulheres, pessoas negras e asiáticas na televisão, e que hoje esses dados são comprados por serviços de streaming justamente porque há uma cobrança muito forte do público. No Brasil, esse movimento demorou para engatar e só aconteceu em meados de 2010.
"Mas, quando a conversa começa, ela não para mais", acredita. "O senso crítico só vai aumentando e o público passa a olhar mais para cada vez mais detalhes —representatividade no elenco, na produção da novela, na abordagem de temas mais sensíveis, etc. É uma evolução que acontece junto com os telespectadores. Daqui a dez anos, a discussão será ainda melhor"
"Maneiras de lidar com a menstruação, diferentes formatos de maternidade —temas como esses, quando são escritos por homens, não retratam a realidade, caem em estereótipos. Por isso, é muito importante que a gente cobre essa representatividade também atrás das câmeras, entre autores, diretores, roteiristas e câmeras".
De "Malu Mulher" a "Pantanal"
"Sempre teve um olhar para a mulher telespectadora, porque elas são maioria na frente da TV, como são maioria na população brasileira, mas de forma muito fútil. Como se colocando um galã bonito elas estivessem contempladas", percebe Padiglione. Isso mudou a partir de "Malu Mulher", exibida entre 1979 e 1980.
Para a especialista, a novela foi a primeira a "levantar uma grande bandeira", já que tratava do direito ao divórcio e da violência doméstica de forma favorável às mulheres. "Tem uma cena clássica em que ela leva um tapa e não se deixa humilhar daquela maneira, por isso pede a separação. Esse é um recado muito forte nos anos 1980", lembra.
Ela pondera, no entanto, ao afirmar que, quando uma novela trata um tema entendido como feminista em sua trama, não entra na conta apenas a vontade da autora ou da emissora de TV de empoderar mulheres, mas tendências que surgem nas redes sociais e assuntos que vão bem nos algoritmos.
"As coisas não são tão autorais assim, a novela está sempre tentando 'pescar' o público. Tudo é norteado por pesquisas, os roteiros obedecem aos algoritmos das redes", fala.
Por isso, por mais feministas que algumas novelas se proponham a ser, há temas que são quase proibidos, como o direito ao aborto. Quando o assunto aparece, geralmente envolve morte, arrependimento ou outra forma de julgamento moral sobre a personagem. "Meu sonho seria ver uma mocinha fazer aborto e seguir a vida numa boa, mas existe um medo de perder audiência mexendo nesse assunto", percebe Padiglione.
"Pantanal", remake da novela de Benedito Ruy Barbosa exibida há 32 anos e grande aposta da Globo para o horário nobre, não deve trazer à mesa temas diretamente ligados às mulheres, mas a aposta é que entre na lógica de apresentar uma perspectiva feminina à trama. "A pauta ali é outra: meio ambiente".
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