Transparência, maiô: condomínios podem controlar roupa de moradoras?
As cantoras Nath Fischer e Andressinha, da dupla de trap Hyperanhas, relataram que foram expulsas de um apartamento alugado pelo Airbnb no Rio de Janeiro (RJ) por causa de uma "roupa indevida" —elas usaram o elevador do prédio em que estavam hospedadas enquanto Nath estava com um vestido transparente, figurino de um clipe que gravaria naquele dia, e a hospedagem foi cancelada na sequência. Semanas antes, a influenciadora Bruna Nery foi repreendida pela síndica de seu prédio, em Uberlândia (MG), por chegar de um bloco de Carnaval e entrar no prédio usando um maiô, parte de sua fantasia.
Universa já noticiou vários casos semelhantes, entre eles o de uma jovem que foi advertida por "roupas inadequadas" em um condomínio de São Paulo e outra que recebeu um bilhete de um vizinho pedindo que ela tivesse "pudor" ao escolher suas roupas, em Maringá (PR). Mas, afinal, esse tipo de constrangimento é permitido por lei?
A resposta é não. Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, há um viés machista nessas abordagens, que "deve ser cortado pela raiz", já que não há nada na legislação que proíba uma mulher —ou qualquer condômino— de circular pelo espaço público usando roupas curtas ou justas.
"A pessoa só deve ser notificada no momento em que praticar um ato obsceno. E roupa curta, decotada ou chamativa de alguma forma não configura ato obsceno", afirma Márcio Rachkorsky, advogado especialista em direito condominial. "Portanto, esse tipo de abordagem não pode ser feita".
Rachkorsky e Lívia Santos, advogada especialista em direito imobiliário, listam pelo menos três motivos que tornam infundadas as abordagens a mulheres que circulam nos condomínios com roupas ditas "inadequadas":
- não estão ancoradas na lei, afinal não há no Código Civil norma que verse sobre as roupas das mulheres;
- são anacrônicas, ou seja, não dialogam com a sociedade do século 21;
- e discriminam mulheres, já que dificilmente esse tipo de cobrança recairia sobre os homens.
"As regras do condomínio devem refletir a legislação civil e penal, ou seja, não podem praticar discriminação de gênero", fala Santos. "A convenção pode limitar o uso de um elevador social em trajes de banho, por exemplo, assim como faz para quem chega com sacolas ou desce com o lixo, mas não pode impedir que uma pessoa transite ou acesse as área comuns do prédio por suas vestimentas, principalmente se isso é feito de forma discriminatória, pela condição de ser mulher".
Os advogados explicam que há muitas convenções de condomínio escritas há 40 ou 50 anos e que ainda estão em vigor. São anteriores a 2002, data no nosso atual Código Civil, mas não se atualizaram e ainda seguem o Código Civil anterior, de 1916, ou seja, são baseadas em normas de cerca de 100 anos.
"Essas convenções, muitas vezes, dizem que as pessoas devem se trajar 'dentro dos bons costumes', o que esses falsos moralistas interpretam de forma errônea. As palavras que constam nas convenções antigas não se aplicam aos dias de hoje, por isso elas precisam ser atualizadas.", fala Rachkorsky.
"Me senti suja": notificação pode ser considerada assédio
"Me incomodou muito esse julgamento moral. Me senti invadida, constrangida, suja", disse a Universa a influenciadora Bruna Nery a respeito da mensagem que recebeu da síndica, que a notificou pelo WhatsApp, usando uma foto dela de maiô no elevador, feita pelas câmeras de segurança.
Nath Fischer, uma das rappers expulsas do condomínio no Rio de Janeiro, afirmou, nas redes sociais: "Em todos os hotéis que frequento, nunca fui discriminada por estar usando uma roupa curta ou transparente. Deixa as mulheres usarem as roupas que quiserem. A gente nunca viu uma discussão por causa de um homem que entrou sem camisa no elevador".
As duas relatam ter se sentido constrangidas com a abordagem, o que não pode acontecer, afirmam os advogados.
"Quem faz a gestão do condomínio, seja o síndico, a administradora ou o jurídico, precisa agir com rigor para cortar pela raiz qualquer constrangimento, preconceito ou machismo".
Lívia alerta, ainda, que esse tipo de constrangimento às condôminas em razão de roupas curtas ou justas, por exemplo, pode ser enquadrado como assédio e até importunação sexual, a depender de como é feita essa abordagem.
"Quando o síndico ou subsíndico se vale do cargo para constranger essa mulher, ele está cometendo um assédio", explica a advogada. "Da mesma forma que existem leis que dizem que uma mulher não pode ser constrangida por suas roupas ou por seu corpo em qualquer espaço público, como a calçada ou um shopping, ela também não pode passar por isso dentro de um condomínio".
Universa entrou em contato com a assessoria de imprensa do Airbnb, plataforma pela qual Andressinha e Nath se hospedaram no Rio de Janeiro. A empresa afirmou que condena "qualquer postura ou atitude discriminatória" que "comprometa a dignidade humana" ou contrarie as leis vigentes. A plataforma informou que possui regras e uma política de não discriminação que reforça os princípios da "inclusão e respeito". As normas são direcionadas a anfitriões e hóspedes. "Quaisquer violações a tais regramentos estão sujeitas às medidas cabíveis, como suspensão da conta e/ou banimento na plataforma", informou a empresa.
Como denunciar constrangimentos e discriminação de gênero
O advogado Márcio Rachkorsky defende que quem sofre esse tipo de constrangimento deve se movimentar, "jamais se calar".
Ele sugere que, num primeiro momento, a pessoa leve o assunto ao debate público, dentro do próprio prédio, para que outros condôminos saibam da situação e possam apoiá-la:
"Elas devem explicar aos demais moradores, com cordialidade, o que aconteceu e deixar claro que não vão admitir ser constrangidas novamente. É preciso exigir respeito", orienta o advogado.
"A maioria dos condomínios tem grupos de WhatsApp. Imediatamente após receber a notificação, seja ela verbal ou escrita, a pessoa pode mandar uma mensagem explicando o que aconteceu: 'Olha, gente, sofri um constrangimento por esse motivo, foi muito desconfortável, não admito este tipo de coisa. Estou trazendo a discussão para o grupo para que não aconteça mais'", sugere.
Quando nada resolve, explicam os dois advogados, é possível levar o caso à Justiça, movendo uma ação cível e pedindo indenização por dano moral.
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