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A primeira intérprete da Tijuca: 'Carnaval existe por causa da mulher'

Wic Tavares foi oficializada como intérprete oficial da Unidos da Tijuca para o desfile de 2022 - Thiago Bernardes / UOL
Wic Tavares foi oficializada como intérprete oficial da Unidos da Tijuca para o desfile de 2022 Imagem: Thiago Bernardes / UOL

Luiza Souto

De Universa, do Rio de Janeiro

12/04/2022 04h00

Caía uma chuva de alagar vários pontos da cidade do Rio de Janeiro quando integrantes da escola de samba Unidos da Tijuca ocupavam a rua atrás da sua quadra, no Centro, para mais uma noite de ensaio técnico. Ao microfone, a cantora Wic Tavares, de 25 anos, pedia: "Deixa molhar pra lavar", e ninguém arredou o pé. Pela primeira vez, ela sairá como intérprete oficial da azul e amarela, escola que nunca teve o posto ocupado por uma mulher.

"Antes era apoio, atrás dos homens. Hoje estou ao lado do meu pai, em ascensão, igual a ele", orgulha-se Wic, filha de Wantuir, que defendeu a Tijuca pela primeira vez em 2001 e voltou em 2019. Sua mãe, Cecília, é apoio na São Clemente.

Natural de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Wic aprendeu a sambar ao mesmo tempo em que começou a andar. Ela acompanhou o pai desde cedo em desfiles das escolas de samba por onde passou, e aos 8 anos, recebeu, digamos assim, uma profecia:

"Uma emissora de televisão me entrevistou quando eu tinha 8 anos, ao lado do meu pai, e a repórter disse que no futuro eu iria substituí-lo. Hoje, estou muito feliz porque não o substituí, mas estou ao lado dele e na posição onde sempre quis estar."

A primeira vez como apoio de carro de som de uma escola foi aos 15, na Inocentes de Belford Roxo, quando a agremiação estava no Grupo Especial. Depois disso, passou pela Portela, Estácio de Sá, São Clemente, Porto da Pedra, Viradouro, foi campeã do Carnaval ao lado de Neguinho da Beija-Flor e se apresentou até em terras paulistanas, na Tucuruvi.

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Wic Tavares canta o samba da Unidos da Tijuca no ensaio técnico do Carnaval
Imagem: Thiago Bernardes / UOL

Resposta ao machismo

Em 2019, com a chegada da maternidade, ela conta que ganhou confiança para se apresentar ao lado do pai, na Tijuca. No ano seguinte. tornou-se apoio da azul e amarela.

Ano passado foi convidada a defender o samba da escola, "Waranã - A Reexistência Vermelha" (que será apresentado este mês depois dos desfiles serem adiados por causa da pandemia do coronavírus), mas Wic achou que não seria capaz. "Por causa do machismo no meio tive medo e falei que não sabia se aceitaria. Perguntei para minha mãe, e ela falou que eu tinha que arriscar. Fui e, quando cantei, todo mundo chorou."

As disputas pelo samba aconteceram no final de 2021, por meio de lives, e quando esteve na quadra para cantar, Wic recorda-se de ouvir que "ia tomar pernada", já que ali estavam nomes mais experientes do samba. Também escutou que os versos pareciam "sambinha da Xuxa". Os críticos acharam infantil a letra, que fala da lenda do guaraná. A resposta a essas ofensas veio da grande maioria.

"Se fosse um cantor de renome não teria essa falta de respeito. Afinal, o que é samba de criança para você? Eu acho ótimo, porque tenho um filho de 2 anos. Mas entendo que é um samba diferente. Só sei que na terceira live que fizemos todos cantaram o samba de cabeça, e falei: 'A gente está escrevendo uma história', porque não imaginava que isso fosse acontecer."

Wic Tavares foi oficializada como intérprete oficial da Unidos da Tijuca para o desfile de 2022 - Thiago Bernardes / UOL - Thiago Bernardes / UOL
Wic Tavares diz que a maternidade a deixou mais confiante na carreira
Imagem: Thiago Bernardes / UOL

"Se a mulher criou o samba, ela consegue levar"

Das 12 escolas do grupo especial, apenas Tijuca e Paraíso do Tuiuti terão uma mulher como intérprete —Grazzi Brasil defende a escola de São Cristóvão—, unindo-se ao pequeno número de mulheres que estiveram no posto como Tia Surica e Clara Nunes, na Portela, e Elza Soares no Salgueiro e na Mocidade.

O cenário predominantemente masculino se dá em todos os outros cargos importantes nas agremiações. Não há, por exemplo, uma mestre de bateria, e apenas Rosa Magalhães assina como carnavalesca, na Imperatriz Leopoldinense.

"A gente está sempre na coxia. Eles dizem que a mulher não tem potência. Mas sabe o que acontece? Eles põem a gente como apoio porque tem homem que não aguenta até o final. Então como a gente não consegue levar? Eu cantei e estou ótima", se envaidece, molhada ainda da chuva.

Para tentar entender a pouca presença feminina, recorremos ao passado. Não fosse a baiana Tia Ciata a levar o samba para o Rio e receber bambas em sua casa na Praça Onze, em uma época em que essas reuniões eram proibidas, talvez nem estaríamos aqui falando dele. Foi lá, em 1916, onde o primeiro samba da história, "Pelo telefone", de Donga e Mauro de Almeida, foi gravado. Mas o desconhecimento desse marco, na avaliação de Wic, é um dos principais motivos que afastam as mulheres dos cargos principais das escolas:

"Muita gente não sabe a real história. Pergunta a qualquer componente quem é Tia Ciata. Ninguém sabe responder. E acho que falta acabar com o tabu de que mulher não sustenta o samba. Se a mulher criou o samba, ela consegue levar."

Para ela, muitas mulheres também não buscam esses espaços pelo medo da rejeição. "Você chega na escola e logo te perguntam se você é passista. Nunca pensam em uma outra função", ela exemplifica.

Wic Tavares foi oficializada como intérprete oficial da Unidos da Tijuca para o desfile de 2022 - Thiago Bernardes / UOL - Thiago Bernardes / UOL
Wic Tavares já se apresentou no Maracanã com a cantora colombiana Shakira
Imagem: Thiago Bernardes / UOL

De Caxias para o mundo

Com um dos sonhos conquistado, Wic agora quer estar "em toda parte do mundo". Fama internacional já tem: aos 17, dançou no evento de encerramento da Copa das Confederações, ao lado de Shakira, no Maracanã. Isso porque a cantora, que em breve lançará novo trabalho, nem sabia que o teste que fora fazer para um evento tratava-se da final do campeonato, muito menos que envolvia a cantora colombiana.

"Íamos dançar street dance no chão do Maracanã com um grupo de 300 pessoas, mas a Shakira queria um só de meninas. No dia seguinte, fomos em seis para uma sala de vidro dançar. Como sou mais alta que ela, pensei que nem seria escolhida, e comecei a fazer os passos do meu jeito, zoando, junto a uma amiga. Até que ela escolheu nós duas", recorda-se, empolgada.

Às vezes a gente acha que não tem ninguém vendo porque sabemos como é difícil ocupar esse lugar. Agora quero levantar a bandeira para as mulheres não terem medo. A gente não pode se esconder, porque o 'não' a gente já tem

Maternidade solo

Apesar de toda experiência, a confiança no trabalho veio mesmo após a maternidade. Que não foi nada fácil. Mãe solo desde os 7 meses de gestação, fruto do primeiro relacionamento, Wic revela um período de depressão, só superado com o apoio da sua família.

"Meu ex reclamava de tudo, falava que eu tinha problema, que eu me olhava muito no espelho, até me sentir horrorosa e a pior das mulheres. Isso é muito ruim. Você entra num buraco e não consegue sair. E passei por isso grávida. Mas resolvi terminar porque senti que ia acabar com a minha vida. Aos 22 anos a pressão foi a 20. Ele não me ameaçava, mas sabia que aquilo ia matar a mim e a meu filho. Tive que ser forte, mesmo estando apaixonada."

E para que o menino Arthur passe longe desse tipo de comportamento opressor, Wic diz que lhe dá todo amor possível.

"Toda hora falo 'eu te amo', mostro a marca da barriga e digo que ele veio dali. Nessa idade, diálogo, amor, carinho e atenção são primordiais."