Lilia Cabral: 'Na pandemia, síndrome do pânico voltou com taquicardia'
Uma das maiores atrizes do país, Lilia Cabral, de 64 anos e cerca de 50 de carreira, se deparou com o retorno de um sentimento antigo durante a pandemia. "A partir do momento em que o caos sanitário mundial se instalou, comecei a sentir tudo aquilo que sentia quando minha mãe faleceu, em 1987", conta, em entrevista a Universa.
"A síndrome do pânico voltou, com taquicardia, medo. Comecei a me segurar muito, mas, como tinha essa vivência de preservar minha saúde mental, sabia que precisava de ajuda, pois não queria ficar me maltratando", diz. De volta à terapia, que tinha pausado em 2007, conseguiu colocar as emoções de volta aos eixos.
Meses depois do início do isolamento, entre setembro e outubro de 2020, também como uma maneira de se manter ativa, criou uma peça com a filha, Giulia Bertolli. "A Lista" era apresentada em formato virtual, com três câmeras voltadas para o palco em que atuavam. "Uma experiência interessante, mas estranha", brinca Lilia. Agora, a dupla está em cartaz com a mesma peça, mas presencialmente, no Teatro Renaissance, em São Paulo. A peça tem texto de Gustavo Pinheiro, direção de Guilherme Piva e produção de Celso Lemos.
No palco, a atriz vive Laurita, uma mulher aposentada, com pouquíssimo contato com a família e que mora em um prédio em Copacabana, zona sul carioca. Ao longo da história, a personagem desenvolve uma relação com sua vizinha Amanda, interpretada por Giulia, que faz as compras de supermercado para ela durante o período de isolamento por causa da covid.
Aos poucos, o público vai se identificando com as personagens, seus anseios e divergências. Entre alguns temas apresentados estão a solidão, principalmente entre pessoas mais velhas, sentimento que aflorou durante o período de isolamento. Leia trechos da entrevista abaixo.
Na peça "A Lista", a solidão é um dos temas centrais da história da sua personagem, Laurita. Como o tema conversa com o período que vivemos?
A solidão é uma coisa presente no mundo inteiro, mas a gente passou a ter um novo olhar para essa questão. A pandemia veio para que as pessoas pegassem uma vassoura e empurrassem suas responsabilidades para debaixo do tapete, para o cantinho, atrás da porta. Só que, como veio em conjunto com um vírus, uma coisa tão agressiva nunca vista antes, trouxe também angústia, depressão e tristeza. Fazendo uma rápida reflexão, não dá para pensar só em 'como eu me basto na solidão?', pois os outros sentimentos que eu listei estão mais fortes do que antes. Ou seja, o processo de entendimento acaba ficando mais profundo e, neste momento, entrar nesse nível pode não ser o que a pessoa quer. E, agora, mesmo com as coisas estão voltando, as pessoas se vendo novamente, o tema da solidão ainda precisa ser discutido.
Como enfrentou esses sentimentos que cita, angústia, depressão e tristeza, durante a pandemia?
A partir do momento em que o caos sanitário mundial se instalou, eu comecei a sentir tudo aquilo que sentia quando minha mãe faleceu, em 1987. A síndrome do pânico voltou, com taquicardia, medo. Comecei a me segurar muito, mas, como tinha essa vivência de preservar minha saúde mental, sabia que precisava de ajuda, pois não queria ficar me maltratando.
Desde então, faço terapia uma vez por semana e me faz muito bem. Não deixei de produzir, de ficar ativa, e as sessões eram para falar de outras questões. Acho que existe esse estigma de que terapia é falar de coisas ruins. Pelo contrário, você está lá em busca de evolução, que pode vir também quando você fala de suas conquistas.
Laurita é assídua em grupos de WhatsApp, usando-os como uma forma terapêutica, mas é avessa à terapia. Acredita ser um perfil comum entre mulheres?
Vejo que ainda existe um resquício de que, quem faz terapia é maluco, quase com um quê esquizofrênico. O mundo avançou e as pessoas conseguiram mudar um pouco essa perspectiva em relação aos cuidados com a saúde mental. Só que, em muitos casos, as mulheres podem entender que só as conversas com as amigas, nos grupos do 'zap', bastam para elas. Talvez não exista uma consciência sobre outras necessidades de autoconhecimento e a importância de falar sobre mais assuntos.
Tem também o fato de que, na velhice, ao meu ver, ou você amplia mesmo e continua crescendo, se renovando, ou você vai se limitando, deixando de fazer muita coisa por achar que não pode. E, quando você se limita, passa a fazer as mesmas coisas todos os dias, tem a rotina certinha de horários. É como se o mundo te fizesse pensar que já realizou muita coisa nessa vida e que chegou a hora de descansar, ficar bem quietinha.
Ainda falta uma discussão aprofundada sobre solidão, principalmente entre idosos?
Com a pandemia, a solidão ficou muito mais exposta. As pessoas se viram obrigadas a ficar dentro de suas casas, sem poder fazer seus programas. Muitos não têm família, ou, se têm, não há visitas ou ninguém quer cuidar. Essa ausência familiar vai engolindo o idoso. É uma discussão cada vez mais necessária, sim. Na peça, acho que conseguimos abordar esse e outros assuntos de uma forma leve, mas certeira.
Que tipo de ensinamento teve, na sua família, sobre envelhecimento?
Sou de uma família na qual minha avó ficou doente em uma cama por nove anos e eu só me lembro dela nesse estado. Então, uma das lembranças que tenho é de ver toda a família se unindo para ajudar a cuidar dela, uns ajudando os outros. Hoje em dia, se uma situação assim acontece, já mandam a pessoa para uma casa de repouso, chamam uma cuidadora, ou ficam brigando, pois ninguém quer assumir a responsabilidade de cuidar.
O que falta para as mulheres se permitirem a diversão, o romance e as novas experiências, a despeito da idade?
Essa é uma questão que envolve diversos sentimentos, bagagens que as mulheres carregam consigo. No entanto, penso ser uma questão de se reencontrar, perceber as necessidades que a própria vida coloca. Essas pausas para pensar e se entender funcionam como um empurrão para seguir um caminho novo e cheio de surpresas. Às vezes, essas oportunidades surgem do nada mesmo, parecendo algo de novela, e vejo que precisamos estar atentos, bem espertos no momento presente. É uma questão de autoestima também, de estar rodeado por pessoas que apoiam, incentivam e até dão a mão e vão junto.
Qual o benefício de ser mãe e colega de trabalho na hora de subir ao palco com sua filha?
Giulia e eu sempre tivemos uma boa relação, com todos os tropeços e crises de uma relação de mãe e filha. No trabalho, nós duas andamos muito bem, especialmente porque nós nos ouvimos e dialogamos bastante, e conseguimos coordenar as diferenças sempre com tranquilidade. Estar em cena com ela é muito prazeroso. Ser mãe dela sempre foi um processo de reflexão, mas sem deixar o 'volta tal horário', 'não faça isso, mas faça aquilo'. Mãe é mãe, não tem jeito.
E como mãe, qual avaliação faz de si?
Me avaliando como mãe, nunca pensei ou sonhei algo para a Giulia ser, por exemplo, médica, filósofa, engenheira? Só observava bastante como era o astral dela. Então, percebi que minha filha era muito criativa, divertida, gostava de ler. Quando chegou a hora de colocar na escola, eu já sabia que precisava procurar uma instituição que não fosse tão fechada, mas algo que desenvolvesse mais o lado da comunicação, das artes. Acho que ser mãe é um processo de observar e respeitar, sempre. A gente conversa muito sobre as coisas que cada uma quer fazer, damos opiniões e ouvimos com atenção a fala da outra. Trocamos muita coisa. Isso é fundamental nas nossas vidas. Os ruídos da comunicação são o que mais atrapalham as relações humanas.
Seu exemplo é de uma artista que batalha por seus próprios projetos. O espaço para mulheres na arte é suficiente?
Mulheres correndo atrás dos projetos não é algo de agora. Nós sempre lutamos pelas nossas ideias, porém, talvez, isso tenha entrado mais em evidência, justamente porque é possível ter uma conversa mais direta com quem faz acontecer e há uma diversidade de novos veículos e formatos. Se a gente parar para pensar nas grandes damas do teatro brasileiro, elas foram grandes empreendedoras. Para falar a verdade, ainda bem que estamos em evidência, pois mostra a qualidade do nosso trabalho. Sempre fiz meus próprios projetos, com todas as dificuldades do mundo, sem desistir. Um exemplo foi "Divã", que lutei muito para fazer a peça, depois o filme e, então, o seriado. Na realidade, essa questão de estar no palco e na produção quase sempre foi uma rotina.
A passagem do tempo faz as possibilidades de trabalho para artistas mulheres diminuírem?
Talvez exista uma certa vontade de criar histórias para atrair o público mais jovem, não sei, é uma suposição. Porém, teve uma época, em Hollywood, que se comentava uma possível diminuição dos papéis para mulheres com mais de 60 anos, desvalorizando a história delas. A minha visão tem uma ligação com ciclos, que se abrem e se fecham, e uma hora a roda volta pra trás. A necessidade de contar histórias existe e isso não acaba. Mas, hoje, não vejo um movimento para diminuir ou tirar papéis de mulheres mais velhas, acho até que estão valorizando. Os filmes "A Filha Perdida" e "Belfast", por exemplo, que foram indicados ao Oscar de melhores longas, precisavam de atrizes com experiência de vida para viver as personagens, se não, não fazia sentido e perderia a densidade. Penso que os papéis pedem uma densidade única e, na hora de escolher o intérprete, ao meu ver, isso precisa ser levado em conta, pois pode prejudicar o entendimento de todo o enredo.
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