Ela escreveu diário para irmão em coma por 15 anos: 'Compartilhar a vida'
"No dia 16 de setembro de 2005, eu tinha mudado de casa fazia pouco tempo, estava arrumando fotos na parede. Lembro de ter olhado uma foto minha com o meu irmão Itamar ainda pequeno e ele estava com um olhar triste. "Será que o Itamar era triste?", pensei. O telefone tocou. Era minha mãe, com uma voz chorosa. Ela disse: "O Ita sofreu um infarto".
No hospital encontrei meus pais chorando. O Ita estava na UTI, e um médico novinho veio falar comigo. Contou que meu irmão havia chegado andando, fez todos exames e teve uma parada cardíaca no consultório. Como se tivesse desligado da tomada, caiu no chão e teve mais seis paradas. O médico ficou tentando reanimá-lo por 50 minutos, mas disse que ele teve o pior infarto na pior idade. O Ita tinha 41 anos à época.
Ficamos ajoelhados na entrada do hospital, desesperados, esperando notícias até a madrugada. No dia seguinte, o transferimos para um hospital mais equipado. Ele passou 15 dias na UTI, um mês na unidade semi-intensiva e outros três meses no quarto.
"Dormia pouco porque sabia que dormiria por 15 anos"
Percebi que as coisas iam demorar mais do que o previsto quando meu irmão foi pra casa dormindo, mas sem estar ligado a nenhum aparelho. Ele não precisou fazer traqueostomia porque reaprendeu a engolir com a fisioterapia. A única necessidade era uma sonda gástrica.
O Ita tinha uma qualidade rara. Se ele comprava um botão e, meses depois, voltava ao local, o vendedor lembraria dele. Eu podia comprar a loja inteira e no dia seguinte a pessoa que me atendeu não saberia o meu nome. Meu irmão era muito carismático e, até hoje, quando posto foto dele nas minhas redes, o que mais ouço são as pessoas falando do seu sorriso.
Ele era boêmio, capaz de ver o sol nascer no meio da semana e no dia seguinte comer pastel e caldo de cana numa feira que estava ainda sendo montada. Entendi depois que ele tinha que viver intensamente todo o tempo. Acho que dormia pouco porque sabia que depois dormiria quase 15 anos.
"Perdi o chão"
Foi muito difícil. Não passava pela minha cabeça que isso pudesse acontecer. Quando os médicos começaram a tirar a sedação, era para ele acordar, mas não acordou. Os exames mostraram que ele não estava cego, surdo, nem tetraplégico, mas os estímulos estavam lentos. Em nenhum momento disseram que ele poderia nunca mais acordar. Ou não falaram porque não estávamos preparado para ouvir.
Tive esperança que ele voltaria no primeiro ano. Depois disso, um neurologista indicado por uma amiga veio ver o Ita e, logo que saiu do quarto, nos chamou. Estavam meu pais, filhos, meu outro irmão, e ele disse para a gente fazer uma corrente com as mãos, que éramos uma corrente muito forte, que um elo havia mudado, mas que nós não podíamos deixá-la quebrar. Nesse momento, caíram todas as minhas fichas de que ele não ia voltar. Perdi o chão.
Comecei a passar por todos os estágios do luto. Eu já tinha vivido a negação, mas a partir daí perdi a esperança e fiquei com raiva. Muita raiva. Não achava justo estar me divertindo, saindo para jantar, viajar, e o Itamar não poder fazer o mesmo. Tive os piores sentimentos e comecei a invejar as pessoas que tinham irmão. Fiquei com raiva dos amigos dele que deixaram de visita-lo e das pessoas que foram se afastando. A vida delas voltava ao normal e a dele não.
Em 2013, ampliei uma foto 3x4 do Ita que encontrei no bolso da calça que ele usava e que me deram ainda no hospital. Escrevi um texto no Facebook que começava dizendo que ele morreria no dia 16 de setembro. Muita gente comentou, me escreveu para contar coisas sobre ele que eu não sabia.
Meses depois, tive vontade de escrever novamente. Minha gata fugiu e foi atropelada. E com medo dela morrer, pensei: "Se o Ita acordar, ele nem vai saber que eu tive uma gata e preciso contar a ele".
Passei, então, a escrever sobre as coisas que eu iria falar para o Ita e criei o blog "Pra quando você acordar". Tinha tanta coisa para contar: que meu pai tinha morrido, que a gente tinha dois sobrinhos novos, que as ruas próximas de casa tinham mudado de direção, que a locadora de filmes tinha fechado. Foi uma catarse e comecei a ter devolutiva dos amigos e de desconhecidos também. Um homem de Manaus fez uma música inspirada nele e uma senhora do interior de Minas falou que faria um bolo quando ele acordasse.
Era como se eu tivesse o trazendo para fora do quarto. No blog ele estava fazendo coisas que realmente faria: seria amigo daquelas pessoas, de um músico do Norte do país, de uma senhorinha mineira. E quando chegava, encontrava aquele irmão que não tinha o mesmo cheiro, não tinha a mesma voz, com as mãos e os pés começando a entornar. Era aquela imobilidade, quase-morte. E por isso queria muito que o blog se transformasse em livro. Quando a editora Planeta me procurou, foi um sonho poder deixar para o Ita esse legado.
"Fala no ouvido dele que ele pode ir"
Eu queria saber onde ele estava, se ele ouvia a gente quando chorou no parabéns de um dos seus aniversários, se era ele quem estava ali. Os médicos falavam que tudo que ele fazia era involuntário. Se chorava, se ria, se balbuciava. Mas às vezes parecia que era muito voluntário. Nas duas vezes que minha mãe quebrou a perna, quando a casa dos meus pais foi assaltada, ele teve febre um dia inteiro. Parecia que se manifestava quando alguma coisa acontecia fora do normal.
No final de 2019, fui a uma sessão de microfisioterapia [técnica de terapia manual]. Perguntei para ela se o Ita se beneficiaria da mesma técnica e ela respondeu que não, porque era preciso uma interlocução. "Por que você não o libera para ir embora?", ela me disse. "Fala no ouvido direito dele que ele pode ir, que você está pronta. Às vezes, ele não vai por sua causa."
Fiquei pensando nisso. Achei que eu tinha que liberá-lo para ir, mas não tive coragem. Fui adiando, adiando, adiando...
No auge da pandemia, com frequência eu me desentendia com o home care porque queriam levá-lo para o hospital por qualquer motivo. Eu queria o Ita protegido em casa, porque ele não seria uma prioridade em nenhum um hospital.
Em agosto de 2020, quando minha mãe pegou pneumonia e foi parar no hospital, ele também pegou. O Ita já havia tido outras vezes, mas havia superado. Dessa vez, no entanto, o plantão do homecare do feriado errou, enviaram o antibiótico fora do horário e ele piorou.
Eu ia vê-lo pela janela, falava de longe porque diziam que quanto menos gente no quarto, melhor. Ficava perguntando se ele estava bem e o enfermeiro dizia que ele estava muito ofegante. Perguntei se ele estava sofrendo e pedi para que ele colocasse o telefone no seu ouvido. "Se você precisar ir, Ita, eu estou pronta." No dia seguinte, ele foi. Minha mãe partiu dois dias depois sem nunca saber."
Claro que tem dor. Na última quarta-feira, no próprio dia 16, foi o dia de desmontar o quarto. Levaram a cama e a cadeira de rodas. Doei as roupas, as mantas e os cobertores. Guardei as fotos do quadro de ímã. Há quinze anos, eu pendurava fotos. Você foi generoso em esperar tanto tempo para eu poder aprender a me despedir.
Trecho do livro "Pra Quando Você Acordar"
Bettina Bopp, 57 anos, é professora, escritora e autora do recém-lançado livro "Pra Quando Você Acordar" (ed. Planeta)
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