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'Ele não é o garanhão': como mulheres que vivem em trisais veem relação

Segundo Eluara, Filipe ouve mais comentários machistas sobre a configuração da relação: "Amigos dizem que ele é o garanhão, e ele tenta explicar que não" - Arquivo pessoal
Segundo Eluara, Filipe ouve mais comentários machistas sobre a configuração da relação: "Amigos dizem que ele é o garanhão, e ele tenta explicar que não" Imagem: Arquivo pessoal

Nathália Geraldo

De Universa, em São Paulo

15/04/2022 04h00

A ideia de namorar duas pessoas ao mesmo tempo começou a fazer mais sentido para a assistente social Regiane Gabarra quando ela conheceu a dona de casa Priscila Machado Correa de Mira no trabalho. Após ter sido casada por oito anos com um homem, Regiane se viu apaixonada pela colega e, depois, pelo marido de Priscila, o gerente financeiro Marcel Mira. Era a primeira experiência de trisal que viviam e que, para ajudar no fim do tabu sobre o tema, virou tema de um perfil no Instagram, o @trisalamoraocubo.

Quatro anos depois, estão à espera de um bebê, Pierre, história que, inclusive, já foi contada por Universa: Regiane está na reta final da gravidez. Nesta matéria, ela fala sobre como o preconceito com essa configuração de relacionamento por vezes distorce o conceito de trisal — não é que "o homem se deu bem" ou que uma delas é "a amante". A estagiária de projetos Eluara Laurindo, que mora junto com um parceiro e uma parceira em Cerquilho, a 145 km da capital paulista, também sabe como existe curiosidade sobre como é fazer parte de um trisal. Mas, que não é certo é pressupor que, por ser um homem e duas mulheres, o parceiro é o "garanhão", diz.

A configuração de trisal, quando três parceiros se relacionam ao mesmo tempo, de forma afetiva e sexual, também não é a mesma coisa que fazer ménage à trois, que é uma prática sexual realizada por três pessoas.

A seguir, as duas mulheres contam suas experiências e como o machismo faz com que elas se sintam "apagadas" por quem as critica, sem saberem que as relações têm acordos que servem para todos.

"No Tinder, percebi que eles estavam em pé de igualdade"

trisal - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Trisal formado por Filipe, Eluara e Mayara vive agora um relacionamento à distância: Mayara está trabalhando em outro estado
Imagem: Arquivo pessoal

Conheci Filipe e Mayara no início de 2021, pelo aplicativo. Eu e ela não ouvimos tantos comentários, mas os amigos dele nos objetificam muito. Dizem que ele é o garanhão, o pegador. Meus amigos já entendem que nos relacionamos de forma igual.

Ele até tenta explicar que nós também nos gostamos e nos relacionamos entre nós, mas acho que as pessoas não estão prontas para essa conversa. Filipe e Mayara namoram há treze anos. Então, há poucos anos, ela se reconheceu como uma mulher bissexual e chegaram a um acordo de que ficariam, juntos, com mulheres.

Quando vi o perfil deles no Tinder, era diferente. Percebi que estavam em pé de igualdade. Primeiro, conversei com ela e, em uma semana, encontrei os dois.

Eu soube que gostava de meninos e meninas com uns 12 anos. Mas era uma percepção muito limitada. Me casei muito nova, mas, aos 24, me divorciei do meu marido. Aí, entrei no aplicativo e vi Filipe e Mayara. Precisamos de muito diálogo no começo, brinco que, se entre um casal as coisas se resolvem em uma hora, em um trisal, demora o triplo.

Todos faziam terapia na época e, apesar de sermos complementares, rola ciúme, carência. Ela gosta mais de estar junto, Filipe é mais distante.

Quando decidimos morar juntos, depois de seis meses de namoro oficial, passávamos ainda mais tempo juntos. Tivemos desavenças, por um tempo ele trabalhava muito e eu e ela tínhamos horários mais flexíveis, então ele é quem tinha ciúme.

Acho que quem vê um trisal com um homem e duas mulheres e julga como ele sendo o garanhão gera invisibilidade para nós, que somos bissexuais.

A gente resolveu abrir um perfil no Instagram (@casadetrisal) justamente para falar que os relacionamentos de trisais não são 100% bons, como qualquer relacionamento. Rola uma sensação de isolamento, e ao falar com outros trisais entendi que isso era normal, por exemplo. Acontece que a gente vem de uma estrutura em que a monogamia é o certo, e onde já se sabe quais são as regras. Em um relacionamento poliafetivo, não, a gente precisa fazer os acordos. No nosso caso, permitimos que duas pessoas se relacionem entre si, porque são três relações dentro de uma".

Eluara Laurindo, 26 anos, namora o analista de sistemas Filipe Gabriel de Souza Garcia e a professora de Biologia Mayara Bonifácio Rosa. Agora, eles moram em Cerquilho e Mayara, em Valparaíso de Goiás (GO)

"Na visão machista, sempre comentam que ele tem duas"

marcel trisal - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Marcel, Regiane e Priscila conversam entre si sobre preconceitos que sofrem por formarem um trisal
Imagem: Reprodução/Instagram

"Eu, Priscila e Marcel sempre conversamos sobre como as mulheres são vistas na relação. A sociedade é machista e acabamos lendo comentários de que ele é que tem duas, questionam como nós, mulheres, nos submetemos a isso.

Primeiro, fomos eu e Pri que nos apaixonamos. Depois é que me apaixonei pelo Marcel. Só que colocam o homem como se ele fosse o centro de tudo, o que não tem nada a ver.

No dia a dia, nós duas que somos mais companhia uma da outra, de forma mais constante. Infelizmente, recebemos de seguidores no TikTok comentários de que "uma está excluída", de que "eu sou a amante". Ignoram que existe vários relacionamentos dentro de um. O que eu tenho com a Pri, o que tenho com Marcel e o entre eles.

Não tem isso de "amar mais", o amor é igual, mas a afinidade entre nós é diferente.

Com a gente, por sermos mulheres, ainda há o preconceito e a invisibilidade de que somos bissexuais.

Aliás, isso é uma coisa de que falo na terapia, pois é difícil se aceitar como alguém fora do padrão imposto. O que sei é que temos muito amor e respeito dentro da relação, e isso às vezes até dá nó na cabeça, porque fomos criadas para acreditar que um trisal é algo 'errado'.

Até por isso, resolvemos fazer o Instagram. Quem cuida mais da conta é a Priscila, mas sei que ouvir histórias de mulheres que estão em trisal me ajudou a entender que não somos extraterrestres e que isso dá força para nós, que às vezes nos sentimos invisíveis."

Regiane Gabarra é casada com o gerente financeiro Marcel Mira, 38 anos, e com a dona de casa Priscila Machado Correa de Mira, 37. Os três esperam um bebê, Pierre, previsto para final de abril, e já têm duas filhas, de 14 e 9 anos. Eles moram em Bragança Paulista.