Ela escreveu livro de luto neonatal: 'Perdi bebê aos 9 meses de gestação'
A dor de perder um bebê é algo incalculável. Conseguirmos ter a dimensão de que é algo avassalador, mas não o quanto isso pode afetar pais e mães. E não é tão raro de acontecer. De acordo com a ONU (Organização das Nações Unidas), cerca de 2 milhões de bebês nascem mortos todos os anos. Fazendo um cálculo, significa que temos um recém-nascido natimorto a cada 16 segundos.
Foi isso que aconteceu com a escritora Cássia Gomes, de 38 anos, em 2019. Ela descobriu com 38 semanas que seu filho Antônio, da segunda gestação, não tinha mais vida. Em seu processo de aceitação e cura, escreveu um livro sobre a experiência chamado "Flores que Nascem por Entre as Rachaduras" (Editora Verso).
"Com 22 semanas de gravidez, fui diagnosticada com sludge, que é quando aparece uma colônia de bactérias no líquido amniótico. Neste caso, a mulher pode fazer o tratamento com antibiótico, como eu, ou esperar e observar para saber qual o desfecho. Geralmente, isso ocasiona partos prematuros", conta Cássia.
Cássia relembra que sentia uma conexão diferente com António do que sentiu com Otávio, seu primeiro filho de seis anos. Quase como que soubesse que algo não daria certo.
"Com 37 semanas e 6 dias, fiz uma ecografia de rotina. Estava quase na hora do parto. Por incrível que pareça, eu não queria de forma alguma realizar esse exame. Algo me dizia que algo tinha acontecido e eu não queria saber", conta. E foi durante esse exame que ela descobriu que Antônio estava sem vida dentro de sua barriga.
Os médicos não sabiam explicar qual era o motivo da morte e, por questões emocionais da época, Cássia e seu marido escolheram não fazer uma biópsia no bebê.
"Meu médico disse que o que aconteceu comigo não tem na literatura: um caso de sludge levar ao óbito fetal. Um ano depois do que ocorreu, relembrando, eu e meu marido achamos que talvez deveríamos ter feito a biopsia. Mas não conseguimos na época, era um momento difícil", diz.
Ela fez apenas um exame de análise da placenta que não detectou nenhum problema.
A dor da volta para casa
A essa altura, a casa estava pronta para receber Antônio: com berço, cômoda, guarda-roupa, roupinhas... "Logo que cheguei em casa eu queria me fechar para o mundo. Tanto que o livro surgiu depois de um ano, quando eu não aguentava mais guardar todo esse processo para mim. Por mais que eu fizesse terapia, estava exaustivo demais lidar com aquilo", diz.
Além da dor de perder o filho, Cássia ainda teve que lidar com outros dois grandes problemas: a dificuldade de compreensão e acolhimento das pessoas, e os problemas causados pelo estresse pós-traumático.
"As pessoas não sabem lidar e acolher. Ouvi coisas como 'foi Deus quem quis' ou 'podia ter acontecido algo pior'. Não é isso que você quer ouvir. É como se anulasse o meu filho e eu não tivesse tido esse segundo bebê", fala. Para ela, isso pode ser um reflexo do quão pouco se fala sobre mortes neonatal. "É algo que acontece com frequência. É preciso se conversar mais a respeito, ver estatísticas, saber lidar e acolher de forma mais afetuosa. Quais os tipos de ajuda que essa mãe deve buscar? É importante saber, pois a primeira reação é se isolar", diz.
Além do vazio, há uma sensação de incapacidade iminente nessas mulheres que voltam para casa sem seus filhos. "Você se sente impotente. Vivi toda uma preparação tão maravilhosa, e de repente você chega em casa e sente um vazio", diz.
Pedido de ajuda
Após o parto, Cássia começou a ter picos de pressão alta, ansiedade e síndrome do pânico. "Mas como a mulher negra tem a características de querer enfrentar tudo de maneira rápida e racional, mesmo com meu corpo dando sinais de algo estava errado, eu não queria admitir", diz. Ela frequentemente ia parar no hospital para fazer exames cardíacos por causa das palpitações. Só se sentia segura lá e queria dormir lá a todo custo. Chegou a ir para uma UTI de pacientes com problemas graves no coração. "Eu achava que algo ruim ia acontecer", conta.
Uma colega sugeriu que ela procurasse um psiquiatra, mas ela não acreditava que tudo aquilo que sentia era só emocional. "É uma questão de preconceito com os remédios ansiolíticos. Mas acabei encontrando um profissional muito humanizado e acolhedor. Ele me receitou uma medicação que foi como tirar com a mão meus sintomas", conta.
Mesmo sem o bebê, Cássia tinha leite e vivia no puerpério. Ela precisava de ajuda, sim, para enfrentar esse momento.
"Mas me dei conta que precisava me tratar. Estava com o corpo modificado, sentindo a ausência de alguém para acolher. Me colocar nos eixos era necessário", diz.
Além do tratamento com o profissional, ela também procurou outros tipos de terapia, começou a desenhar e a fazer exercícios físicos.
Livro fez parte do processo de cura
Em meio à pandemia, Cássia já estava exausta de conversar apenas com o marido e terapeuta sobre o que tinha acontecido. Apesar de ajudar, ela queria uma nova válvula de escape. E foi assim que começou a escrever. "Esse livro é como se eu tivesse falando comigo do passado. Foi um processo de autoconhecimento. A vida é uma jornada inacabada e podemos mudar de rumos quando algo não está bem e entendê-la que ela flui, mas que também tem percalços", diz Cássia.
Para ela, escrever era o remédio para a alma que precisava naquele momento, quase um ano depois da perda do Antônio. "À medida que fui escrevendo, resgatei memória e dialoguei comigo. Entendi que a maternidade nos recria, não só nos transforma. Passei a encará-la de outra forma e reconhecer as fraquezas e vulnerabilidades em mim", conta. Quando ela terminou, mostrou a obra ao marido que a incentivou a publicar. E algumas mulheres que passaram pela mesma experiência, leram a obra e disseram a ela que se sentiram acolhidas, pois conseguiam se ver na história.
"O tempo não cura nada, só ameniza. Você aprende a lidar com a dor. O livro é um recorte do meu primeiro ano sem Antônio, mas materializa as lembranças que eu tenho dele. Não tenho nada físico, só um cartão com o pé dele carimbado e uma mecha de cabelo. É reconfortante para mim saber que as pessoas podem se identificar com a minha história, criando seus próprios processos para criar essa força emocional que o momento pede", diz.
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