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Após missão, brasileira conta o que aprendeu com refugiadas ucranianas

VVolunteer, plataforma brasileira de ação social e voluntária, foi à área de conflito para ajudar refugiados - Fabio Kotinda
VVolunteer, plataforma brasileira de ação social e voluntária, foi à área de conflito para ajudar refugiados Imagem: Fabio Kotinda

Marcela De Genaro

Colaboração para Universa, do Rio de Janeiro

20/04/2022 04h00

"O que mais me impressiona é a capacidade do ser humano de sobrevivência. Esse é o ponto, a resiliência, o quanto numa crise a gente consegue fazer. É uma força que a gente não entende. Você vê as fotos, as pessoas carregando malas, e pensa: há quanto tempo elas estão andando?". Essa é a principal imagem que Mariana Serra, 36 anos, idealizadora e CEO da VVolunteer, uma plataforma brasileira de ação social e humanitária, traz da crise humanitária do conflito na Ucrânia.

Mariana, especialista em negócios sociais e resposta humanitária a conflitos e desastres, cruzou a fronteira entre Polônia e Ucrânia para entregar mantimentos e visitar abrigos poloneses para orientar as pessoas sobre os direitos internacionais dos refugiados. Ela estava na República Tcheca, país onde há possibilidade de emprego para quem precisa recomeçar a vida.

Maioria dos mais de 4 milhões de refugiados, ela se atentou à experiência das mulheres. Enquanto suas casas eram alvos de bombardeios na Ucrânia, elas deixavam seu país e caminhavam no frio por três dias, carregadas de malas, filhos no colo e animais. Homens de até 60 anos anos foram intimados a ficar e lutar contra as tropas de Putin numa guerra que completa dois meses no domingo que vem. Para ela, se engana quem olha para essas mulheres com olhar de vitimismo. Ao contrário, o que impressiona é a força.

"Elas chegam lá e ainda têm força para andar mais. Se eu tiver que passar por isso, será que teria essa força? Será que conseguiria fazer escolhas e deixar meus pais que, impossibilitados por algum motivo, me pediram para salvar seus netos? É isso que me toca como mulher, como pessoa, como uma profissional que faz isso há muitos anos; é essa capacidade de se reinventar, de recomeçar", conta.

Missão orientou refugiados

Acionadas por organizações da Polônia e da República Tcheca e também por membros da sociedade civil que conheciam o trabalho da entidade em outros conflitos, como o da Síria, Mariana fez uma missão na primeira quinzena de abril ao lado da mestre em direito internacional em conflitos armados Roberta Costa Abdanur, 29 anos e de uma equipe com seis brasileiros. O trabalho ajudou pelo menos 1.500 pessoas.

VVolunteer, plataforma brasileira de ação social e voluntária, que está em ação nas fronteiras da guerra, traz da crise humanitária do conflito - Fabio Kotinda - Fabio Kotinda
Mariana Serra foi para Ucrânia com equipe para uma missão na primeira quinzena de abril; eles ajudaram ao menos 1.500 pessoas
Imagem: Fabio Kotinda

Segundo ela, a ação foi construída a partir da escuta das necessidades dos assistidos e se constituiu em três pilares. O primeiro foi orientar e criar a melhor resposta com os agentes locais que estão ajudando os refugiados, conscientizando sobre os direitos que quem foge do conflito tem, como residência, acesso a trabalho, cuidados médicos, educação e abertura de conta bancária.

O segundo foi levar mantimentos arrecadados em uma campanha ao país atingido pela guerra. Foram 10 mil dólares arrecadados; 60% gastos em medicamentos e suprimentos hospitalares e 40% em alimentação. Mariana cruzou a fronteira ao lado de voluntários da Polônia e Ucrânia.

Foi uma missão burocrática. Atravessamos a fronteira e fomos até a Zona Neutra, respeitando o limite da nossa segurança e da nossa atuação. Fizemos toda a entrega de comida, medicamento, roupas, o que foi pedido.

"A partir dali, organizações que tinham a expertise dos caminhos na Ucrânia entregaram em hospitais, organizações locais e abrigos para deslocados internos. Sabemos que um dos destinos que essa ajuda chegou foi um abrigo ucraniano que tinha pelo menos mil pessoas", conta a idealizadora.

A terceira ação foi colaborar com abrigos poloneses para desenvolver atividades de capacitação, de empoderamento feminino, e atividades com as crianças. Um dos abrigos visitados tinha 420 pessoas e outro, que servia de ponto de parada no deslocamento, tinha 30 pessoas.

Como reestruturar a vida dessas pessoas?

Mariana explica que a entidade também se preocupa com reestruturar o caminho daqueles que foram atingidos pelo conflito. "Assim como já fazemos na Síria, pensamos na reestruturação. Porque após o conflito, o refugiado que volta não tem mais a sua casa. Os russos saquearam e bombardearam tudo para não ter mais comida para os ucranianos, nem hospitais. Então falta tudo nessas regiões. As organizações precisam se reerguer, as escolas precisam se reerguer. Isso nós estamos mapeando com quem está na Ucrânia", explica Mariana.

Mulheres estão sob risco

Os que não voltam ou que decidem reiniciar a vida em outros lugares, vivem sob medo. Depressão, falta de emprego, xenofobia e até risco de tráfico de mulheres e crianças fizeram parte dos relatos ouvidos pelas brasileiras.

Em um dos abrigos uma mulher tentou suicídio após ver em uma rede de notícias a foto do marido morto. Foi assim que ela descobriu que tinha se tornado viúva. Ela foi salva pela rede de apoio que encontrou.

"Também ouvimos histórias tristes de mulheres e crianças que, no desespero, acabaram sendo levadas por traficantes. Eles agem à noite. Para muitas, a Polônia é um lugar de passagem, elas chegam já com a intenção de ir para a Itália ou para a Alemanha. Mas para isso precisam esperar o procedimento correto, os papéis para irem forma segura. É neste momento que os homens agem: dizem que tem um transporte para levá-las sem que esperem pela burocracia. Elas entram nesses carros e então não há mais notícias".

VVolunteer, plataforma brasileira de ação social e voluntária, que está em ação nas fronteiras da guerra, traz da crise humanitária do conflito - Fabio Kotinda - Fabio Kotinda
Fundadora da VVolunteer fala da vulnerabilidade a que mulheres em situação de guerra são submetidas
Imagem: Fabio Kotinda

Roberta Costa Abdanur relata que existe um outro problema dentro de uma sociedade patriarcal: a dificuldade de as mulheres serem integradas ao mercado de trabalho. "Antes de serem vistas como frágeis, elas são mulheres, são mães, profissionais. Não podemos rotulá-las apenas como refugiadas. Elas estão numa situação de refúgio devido à guerra, mas querem trabalhar", explica a especialista.

Para ela, a imagem que mais marcou neste conflito foi a de resiliência. Não apenas das que precisaram fugir de seu país, mas também das mulheres que abriram suas casas para receber essas pessoas ou desenvolveram projetos, como uma polonesa que criou uma escola para crianças e adolescentes com a grade curricular da Ucrânia:

"Essa motivação das mulheres da sociedade civil de se organizar e ajudar me surpreende e deixa mais esperançosa na humanidade. O brilho no olhar e ao mesmo tempo a preocupação de uma polonesa que criou a escola marcaram para todos nós", diz Roberta.

"A gente consegue ver nos olhos das crianças e também nos dos adultos que ao encontrar uma pessoa diferente, que fala outro idioma, eles querem estar próximos de nós, nos abraçar. Muitas nos davam as comidas que tinham, um pedaço de bolo, mesmo sabendo que não precisávamos. E não podíamos recusar, ou isso iria feri-las."