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Mães pedem à Justiça direito ao aborto por malformação: eugenia ou empatia?

Mulheres pedem na Justiça direito ao aborto de feto com malformação - Getty Images/iStockphoto
Mulheres pedem na Justiça direito ao aborto de feto com malformação Imagem: Getty Images/iStockphoto

Luiza Souto

De Universa, do Rio de Janeiro

21/04/2022 04h00

Grávida de sete meses da segunda filha, a atendente de telemarketing Nicole*, de 29 anos, vem avisando aos amigos e parentes que não haverá chá de bebê: a menina, Valentina, provavelmente não passará de uma semana de vida. Chorando copiosamente ao telefone, a moradora da zona norte de São Paulo conta a Universa que o feto tem uma grave malformação e há dois meses pede na Justiça o direito de interromper a gravidez.

Em 12 de abril de 2012, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que a mulher pode optar pelo aborto caso o feto não tenha desenvolvido o cérebro ou grande parte dele, já que a anomalia é incompatível com a vida. Fora isso, o procedimento pode acontecer se a mulher for vítima de estupro ou correr risco de morrer com a gestação.

O feto de Nicole tem agenesia renal bilateral, considerada a malformação mais grave do trato urinário: ele não tem rins nem bexiga, e por causa disso não houve produção do líquido amniótico. Consequentemente, o pulmão não desenvolveu.

Essa e outras malformações são apontadas por médicos como incompatíveis com a vida: fetos sem rim, pulmão ou coluna, e as trissomias envolvendo os cromossomos 13 e 18, chamados respectivamente de Síndrome de Patau e de Edwards, ganham sobrevida de minutos, horas ou alguns dias, sem chance de reverter a situação. Poucas pessoas chegaram à adolescência, e por isso a Justiça tem sido acionada para interromper essas gestações.

Não há dados sobre aborto por malformação no Brasil. Universa fez uma busca pelo tema nos Diários Oficiais Eletrônicos dos Estados, que são o meio oficial de divulgação dos atos processuais e administrativos do Poder Judiciário.

Entre os anos de 2013 e 2022 houve 59 movimentações de processos com menções sobre síndromes consideradas incompatíveis com a vida, como as de Patau, Body Stalk e Edwards, junto à palavra aborto.

O número, porém, não corresponde com o panorama geral da situação no país, uma vez que a maioria dos processos que falam sobre isso corre em segredo de Justiça.

Na maioria dos pedidos usa-se o termo "aborto eugênico", frase que se repete 221 vezes nos Diários Oficiais. É como se a mãe estivesse selecionando um filho baseado em sua genética. Mas não se trata disso. Nicole nem queria interromper a gravidez, mas ela e o companheiro não concordam em passar pelo sofrimento de carregar uma criança sabendo que ela terá pouco tempo de sobrevida.

E ainda, ela sente dores e, segundo sua obstetra, corre o risco de comorbidades como diabetes e hipertensão gestacional, pré-eclampsia, anemia, hemorragia no parto e até necessidade de histerectomia, que é a retirada do útero.

"Durante o pré-natal ainda é necessário realizar exames de sangue, urina e ultrassom periodicamente, tomar vitaminas e ir a consultas médicas. Tudo isso só prolonga o sofrimento da mulher", lista a ginecologista e obstetra Susane Mei Hwang, coordenadora do Programa de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Sexual do Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo.

Malformações raramente são hereditárias

Em muitas situações, síndromes são causadas por um acidente genético no espermatozoide ou no óvulo. Ou seja: não são hereditárias, conforme explica o geneticista Salmo Raskin. Doutor em genética pela Universidade Federal do Paraná, ele ensina que são raras as situações em que o cromossomo pode ser de um dos pais.

A detecção da anomalia é possível pelo exame cariótipo, por meio da coleta de sangue, ou pela ultrassonografia. Segundo Raskin, não há um tratamento preventivo para que o acidente genético não ocorra.

"Sabe-se apenas que alterações cromossômicas estão associadas com a idade da mãe mais avançada, após os 35 anos", ele afirma.

O obstetra Olimpio Barbosa, diretor clínico do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), em Recife (PE), acrescenta ainda que malformações de trissomia não têm a tendência de se repetir, justamente por não ser algo hereditário.

Ambos os profissionais concordam que a decisão da interrupção deva ser da mulher, e endossam que a postura médica precisa ser a de informar tudo que envolve a anomalia, sem pressão ou não pelo aborto.

Obrigar uma mulher a manter uma gravidez contra sua vontade, na grande maioria só prolonga seu sofrimento. Ter que comprar um caixão no lugar de um berço é muito pesado

Olímpio, obstetra

Nicole procurou a Defensoria Pública de São Paulo para pedir a interrupção da gravidez, mas uma juíza negou por entender que o caso não se enquadra nos que são autorizados no Brasil. Ela está recorrendo.

A opção pelo aborto

Muito antes de o STF apoiar a antecipação terapêutica do parto no caso de anencefalia já existia na Justiça pedidos de interrupção de uma gravidez quando o diagnóstico apontava essa e outras anomalias incompatíveis com a vida. E a jurisprudência tem dado a essas mulheres o direito que elas buscam, conforme afirma a defensora pública Paula Sant'Anna Machado de Souza, coordenadora do Nudem de SP (Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres).

Para entrar com pedido na Justiça, a defensora explica, a mulher precisa apresentar um laudo médico que vai apontar a inviabilidade de o feto sobreviver. A questão é que nem sempre o caso merece a rapidez necessária, e a demora no julgamento faz com que as mulheres tenham seus filhos antes de conhecer a decisão do magistrado.

"Se o código penal possibilita a interrupção de uma gestação fruto de violência sexual, é razoável que se interrompa quando não há a possibilidade de vida do feto. Continuar com uma gestação como essa é violento", conclui Paula.

O advogado Rogerio Campos contabiliza "uns dez casos" parecidos que atendeu nos últimos meses. Ao receber muita negativa da Justiça no início, ele fala que hoje tem usado muito mais a justificativa de risco para a mãe ao levar a gravidez adiante, após, claro, um estudo técnico. "O risco de vida da mãe ligado ao stress pós-traumático, ao estado puerperal é óbvio", ele aponta.

Mas os especialistas ouvidos por Universa explicam que uma gravidez de um feto com malformação não necessariamente causa risco de vida para a mãe.

"Toda gravidez tem um risco maior de complicações. Algumas encaminham para diminuição do útero ou aumento do líquido amniótico", exemplifica Olímpio.

Por isso, a Justiça não atendeu ao pedido de uma grávida de 20 semanas, em 2020. No processo que corre em segredo de Justiça, ao qual Universa teve acesso, uma mãe anexou em seu pedido orientação dos médicos de que "do ponto de vista materno, o seguimento da gestação pode aumentar os riscos não justificados de complicações frente ao diagnóstico de uma doença letal."

Mas o Ministério Público entendeu que "não havia prova concreta de risco materno em razão da gravidez", e compara a doença a diversos casos de câncer, "sem que se possa definir quanto tempo o bebê viverá."

E ainda:

"Passar a autorizar o aborto de forma indistinta, sempre que alguma anomalia for detectada, trará perigosos precedentes a gerar verdadeira eugenia, impedindo o nascimento de diversas crianças tão somente porque detectada alguma doença."

"Como se fosse fácil decidir por um aborto", opina Susane, do Hospital Vila Nova Cachoeirinha:

Não pense que é fácil para a mulher tomar a decisão de solicitar a interrupção da gestação. O sentimento de culpa sempre está presente. A maioria delas questiona se o feto vai sofrer ou sentir dor.

"Me questionei o que é vida"

A documentarista Eliza Capai, 42, descobriu a gravidez no meio da pandemia, em primeiro de abril de 2020. Diretora de "Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime", ela estava no quarto mês de gestação quando o médico achou algo estranho no exame morfológico, mas nada detalhou. Sabendo que a paciente estava de mudança do Brasil para Portugal, país de origem do então marido, pediu que ela repetisse o exame na Europa. Foi quando descobriu que seu primeiro filho tinha uma encefalocele occipital, com poucas chances de sobreviver.

"Pelo que entendi, havia um vazamento de pedaços muito importantes do cérebro", ela descreve.

Portugal permite o aborto até a décima semana de gravidez independentemente dos motivos. Eliza estava na 14ª, mas pela sua situação foi encaminhada para uma maternidade onde fez mais dois exames além do teste genético, antes da decisão pela interrupção. Foram cinco médicos diferentes, além de buscas por casos parecidos para saber como seria se mantivesse a criança.

"Me questionei o que é vida, e acho que é uma resposta muito pessoal. Nesse processo, aprendi que tem que se escutar muito, porque o lugar de arrependimento deve ser muito cruel. Eu tive sangramento no início da gravidez e pedia muito para que tivesse um bebê saudável e curioso. E se não fosse, que meu corpo abortasse naturalmente."

E pensei: 'Essa criança não vai ser saudável nem curiosa. Ela pode sobreviver, mas a chance dela gozar da vida e se deslumbrar com a própria existência é próxima de zero'. Não queria colocar alguém nesse mundo sem a possibilidade de buscar a felicidade e que fosse sofrer até o último respiro.

A interrupção da gravidez aconteceu em 17 de julho de 2020. Eliza tomou um coquetel de remédios e entrou em trabalho de parto sozinha. Fez exercícios de respiração, e treinou para o ato. Teve infecção ao retirar a placenta e foi internada três dias depois. Diante de todo esse processo doloroso, sentiu empatia pela equipe médica que a acolheu. E revolta pela lei brasileira.

"Fiquei imaginando o que teria acontecido se eu estivesse no Brasil. Eu seria considerada uma matadora de bebês, e fiquei com muita raiva do nosso sistema. Mas vivi o luto do filho perdido e do ser mãe, aquela mãe que não vingou."

A partir dessa experiência Eliza passou a ouvir mulheres que viveram a mesma situação, e as conversas servirão para um documentário. O que ouviu, ela fala, foi cruel.

"Vi o caso de uma mulher que tinha conseguido autorização para abortar, mas escutou: 'Se isso vira moda, daqui a pouco você vai abortar bebês com gene da calvície.' Outra escutou da médica para fazer o chá de bebê e curtir a gestação.'

"Se a gente pensa que a medicina fica tentando prolongar a existência de pessoas entubadas na cama, isso é vida? Se vai contra a religião da pessoa, cada um tem o direito de fazer essa escolha. Para mim, não tem nada a ver com eugenia", finaliza.

*O nome foi alterado a pedido da personagem