Até quatro anos: machismo torna mais difícil oficializar divórcio no Brasil
A baiana e dona de casa Luciana B* foi casada por 16 anos e, em julho de 2018, resolveu se separar do marido após descobrir uma traição. Quando entrou na Justiça para dar entrada no pedido de divórcio e pensão alimentícia para os filhos, a audiência demorou a ser marcada e, desde então, já se passaram mais de quatro anos. "Entrei na 1º vara de Justiça de Família de Salvador e depois de quatro anos que a audiência de instrução e julgamento foi marcada. E foi para agosto deste ano só", diz.
Desde a primeira data, ela tenta, sem sucesso, pedir um valor fixo de pensão para os três filhos e fazer com que seu contrato de união estável seja dissolvido. No entanto, segundo ela, a juíza que cuida do caso ainda não concedeu nenhum dos dois pedidos. "Meu advogado nem conseguiu ter acesso à juíza durante a pandemia. E dois servidores da vara dela foram presos", diz indignada.
Como não trabalhava, precisou de ajuda financeira da família para se sustentar durante os anos de espera e até hoje seus filhos sofrem com danos psicológicos por causa do conflito com o ex-marido.
Ela alega que o ex-companheiro, que é médico e ex-diretor de um dos maiores hospitais públicos de Salvador, tem recursos suficientes, mas se diz incapaz de ajudá-la. Luciana conta que o pai de seus filhos realiza depósitos de dinheiro somente quando ele quer. A baiana ainda não sabe se vai conseguir respostas das sentenças e aguarda preocupada e ansiosa pela audiência no segundo semestre deste ano.
A realidade da dona de casa não é única. Segundo um último relatório divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que é responsável por fazer o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, a demora processual nesses casos ainda é grande.
Os números divulgados pelo órgão mostram que o tempo médio dos processos que estão pendentes no tribunal de Justiça Estadual (que é onde as varas de Famílias estão inclusas) é de quatro anos.
Quando vão para a vara de execução—de cumprimento da decisão— podem levar até sete anos. "Os de família tendem a durar muito porque são inúmeros e são marcados por subjetividades. A produção de provas pode demorar muito e esses processos são responsáveis pela elevação dessa média", destaca Mariana Regis, advogada familiarista, especializada em direito das famílias com perspectiva de gênero.
Por que há tanta demora?
Em tese, sentenças de divórcios não demorariam anos para serem concedidas a casais que desejam se separar. O que implica e faz com que haja uma dificuldade e demora processual são os outros pedidos elaborados na Justiça.
"O divórcio por si é muito rápido, entende-se que não há mais defesa e não existe culpa. Agora, quando acumula outros pedidos, como pensão alimentícia e divisão de bens, se arrasta por anos", explica o juiz André Tredinnick, da primeira vara de família regional da Leopoldina, no Rio de Janeiro.
Assim como ocorreu com Luciana*, muitas mulheres precisam reivindicar um valor fixo de pensão alimentícia para os filhos. Dessa forma, a sentença pode demorar anos e fazer com que a situação se torne ainda mais desgastante. "O homem sai do divórcio em condições melhores psicológicas e econômicas. Muitas mulheres desistem e acabam fazendo acordos que não são viáveis. Essa demora processual não gera só prejuízos materiais, mas gera muitos danos emocionais", reforça a advogada.
Segundo os especialistas ouvidos por Universa, um dos maiores impasses diante da demora nos processos é a falta de preparo de alguns juízes que atuam nesse campo, principalmente nas questões ligadas ao gênero.
Diante dessas ações na Justiça, sempre são as mulheres que saem mais abaladas emocionalmente e financeiramente. "O pensamento do Judiciário é um pensamento generalista. É pensado de forma abstrata, especialmente em família", destaca Tredinnick, que também é professor do curso de discriminação efetiva no direito com ênfase em gênero pela EMERJ (Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro).
Há, ainda, um déficit no número de servidores e comarcas que atuam em determinadas regiões do Brasil. Em cidades pequenas, por exemplo, um mesmo juiz pode julgar ações cíveis, comerciais, criminais e de família. Em lugares mais remotos, não há sequer tribunais.
Quando falamos de tecnologia nesses tipos de ação há muito atraso. Muitas vezes, o juiz não é informado e não recebe em seu sistema que determinada mulher sofreu violência doméstica, o que mudaria totalmente a condução do processo e pedidos no tribunal. "É um sistema que não é desenhado para mulher. Vai espelhar a sociedade patriarcal", opina o juiz.
As desigualdades social e racial também fazem parte da discussão.
No caso de negras e pobres, a demora processual é ainda maior. Como não há dinheiro suficiente para contratar um advogado, esperar a defensoria pública também pode levar mais tempo. "Sempre há opressão às mulheres negras e em condições econômicas menos favoráveis. Historicamente, elas são afastadas do sistema Judiciário e muito mais sujeitas a manipulação", diz Regis.
Os especialistas reforçam que sempre as mulheres periféricas são as que mais sofrem com o atraso na Justiça, no entanto, a questão de gênero ainda está presente em todas as classes e atinge até mulheres com maior instrução e poder aquisitivo.
Violência doméstica e partilha de bens causam mais demora
Como algumas mulheres são socializadas para deixar a gestão financeira na mão dos homens, muitas vezes não sabem o acesso que possuem a um patrimônio. Em alguns casos, o Judiciário pode ainda demorar a dar o direito a ela em relação à partilha de bens.
A lentidão ocorre principalmente quando há necessidade de estabelecer divisão de imóveis financiados, outros tipos de compra de imóveis e uniões estáveis não muito claras.
O acesso aos bens do homem pode ser muito burocrático, já que muitos ex-maridos tendem a dificultar a consulta e podem ainda manipular alguns documentos. "O homem lança mão de todos os bens. Traz dados falsos, não apresenta rendimento dos investimentos e isso obriga a pedir quebra de sigilo bancário. Alguns começam a doar valores e colocam até no nome da mãe", afirma Regis.
Já os processos que envolvem violência doméstica também tendem a durar muitos anos. Nos casos mais comuns, o próprio agressor provoca uma demora processual e vê na ação uma oportunidade de continuar violentando a vítima.
A advogada explica que nesses casos o agressor acaba, muitas vezes, se beneficiando desse atraso. "Usam de muitos recursos. Começam a colocar acusações infundadas e provocam a intencionalmente a mulher. Algumas até voltam para o relacionamento", lamenta.
Como acabar com esse atraso?
Embora seja um problema que ainda vai demorar anos para ter, de fato, uma solução, Regis acredita que capacitar juízes e servidores com orientações de gênero pode diminuir a demora dos processos. "Essa demora só aumenta o ciclo de violência. Acho que realmente falta uma capacitação em relação às questões de gênero. Acredito que mudaria o padrão social de resposta".
A advogada ainda defende que haja uma maior fiscalização desses órgãos, já que ainda há muitos casos de corrupção, que contribuem para os longos anos de espera.
Tredinnick diz ainda que o caminho é trabalhar outros sistemas na Justiça para dar voz às mulheres e fazer com que elas tenham um julgamento sob uma perspectiva de gênero. "Uma das primeiras iniciativas é fazer com que as mulheres estejam em cargos representativos em proporção". Ele também acredita na educação dos magistrados como forma de combater a demora processual dos divórcios.
*O nome foi trocado para preservar a mulher
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