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Autora expõe drama de trabalho doméstico em livro: 'Revolta nova geração'

Chico Cerchiaro
Imagem: Chico Cerchiaro

De Universa, em São Paulo

28/04/2022 04h00

"Para minha tia Maria da Glória, a Dodó, cujo rosto nunca vi e de quem apenas sei que o trabalho nunca a libertou."

Dodó é irmã da bisavó da escritora e jornalista Eliana Alves Cruz, colunista do UOL, que a chama de tia, e sua história inspirou o livro "Solitária", escrito por Eliana e com previsão de lançamento pela Companhia das Letras no dia 6 de maio. A frase no início deste texto é a dedicatória da obra.

A história acompanha a vida de duas mulheres negras, Mabel e sua mãe, Eunice, funcionária doméstica que vive em um condomínio de luxo, onde trabalha para uma família de classe alta e é testemunha de um crime.

"Os relatos dos meus familiares sobre minha tia Dodó, que inspirou a personagem de Eunice, são de muito ressentimento por ela não ter tido uma vida. Ela não teve filhos, não teve infância, não teve adolescência: viveu para aquela família", disse a autora em entrevista a Universa. "Dedico esse livro a ela para dizer que ela esteve aqui, fez parte da minha trajetória e que a devo, também, a ela."

Capa do livro "Solitária", de Eliana Alves Cruz - Reprodução - Reprodução
Capa do livro "Solitária", de Eliana Alves Cruz
Imagem: Reprodução

O projeto já rondava a mente de Eliana quando viu que a primeira vítima da covid-19 no Brasil foi uma trabalhadora doméstica — a diarista Rosana Aparecida Urbano, 57, que morreu no dia 12 de março de 2020, em São Paulo. Depois disso, escrever o livro se tornou uma urgência. A obra discute as tensões sociais e raciais herdadas do período escravocrata e a maneira como diferentes gerações encaram esse passado.

"Há uma revolta que as novas gerações sentem, que às vezes não sabem expressar em palavras. É papel da literatura traduzir esse sentimento coletivo por meio de uma história", afirma a autora.

Jornalista esportiva há décadas, Eliane viajou por 32 países cobrindo Olimpíadas, Jogos Pan-Americanos e outros eventos, até que decidiu se encontrar com sua ancestralidade na literatura desde seu primeiro livro, "Água de Barrela" (ed. Malê), de 2018, em que traça a origem de sua família.

UNIVERSA - A dedicatória do seu livro, para sua tia, diz que " o trabalho nunca a libertou". O trabalho liberta alguém?
Eliana Alves Cruz - É uma máxima de governos fascistas que o "trabalho dignifica o homem", "o trabalho liberta". Tivemos um presidente [Michel Temer] que disse "não pense em crise, trabalhe". Isso é muito violento. É o ser humano como máquina produtiva e nunca como cabeça, é só corpo e membros. Essa utilização do corpo humano é um resquício muito sério do nosso período escravocrata, falando especificamente do Brasil. No livro tem uma passagem que a Eunice, que é a protagonista, diz "não adiantava eu sair da casa da patroa, a casa da patroa tem que sair de dentro de mim".

Os relatos dos meus familiares sobre minha tia, que inspirou a personagem, são de muito ressentimento por ela não ter tido uma vida. Ela não teve filhos, não teve infância, não teve adolescência: viveu para aquela família. Morreu de maus tratos com um tumor, então tem toda uma narrativa de ressentimento dos demais pelo desperdício dessa vida. No livro "Água de Barrela" tem uma foto linda da minha bisavó, que era irmã dela. Já ela não tem uma imagem. É como se ela não tivesse passado sobre a Terra. Isso é muito triste, muito pesado.

A história mostra uma postura diferente entre pais e filhos. Enquanto os mais velhos denotam uma gratidão a seus patrões, por exemplo, a geração mais nova se mostra mais inconformada. Isso representa as famílias negras?
Sim, vejo esse choque geracional. Vejo parentes com uma postura, em relação aos seus patrões, de gratidão. A gratidão é um sentimento bonito, mas não pode nos aprisionar. Precisamos identificar a manipulação que determinadas pessoas fazem do sentimento para nos manter subalternos. Não podemos julgar as gerações mais velhas, que vieram de uma precariedade muito mais violenta. Precisamos, na verdade, ter um olhar mais generoso e ajudá-los a sair desse sentimento de gratidão, para que não fiquemos preso nele também.

Um levantamento recente mostrou que, em novas plantas de apartamentos, o quarto de empregada não aparece mais. O que essa mudança de arquitetura mostra?
Tem que acabar [o quarto de empregada], né? No livro, os cômodos falam, porque essa arquitetura diz muita coisa. As paredes têm ouvidos e boca e temos que ouvir o que elas estão dizendo. Ainda vai demorar muito para uma mudança porque temos que pensar que o capitalismo e o sistema colonial são criativos. O quarto vai sumir, mas vai para onde? Provavelmente, para as empresas que terceirizam faxineiras. Decidi recorrer a uma dessas empresas por estabelecerem uma relação trabalhista e legal. Mas a mulher que foi até a minha casa me contou que elas não recebiam dinheiro para almoço nem transporte. Do valor que eu iria pagar, quanto vai sobrar para ela? Temos que pensar realmente como vamos tirar essas pessoas dessa situação e até que ponto contribuímos com ela, às vezes até inconscientemente.

O livro também toca em questões importantes para as mulheres, como o aborto e violência doméstica. Na sua visão, qual a pauta mais urgente quando falamos em direitos das mulheres hoje?
Acredito que a pauta mais urgente do Brasil como um todo é olhar todo mundo com a verdadeira humanidade, porque tem uma parcela de população que adora repetir esse mantra de que "somos todos humanos", mas sabemos que uns são mais humanos que outros. E, no caso das mulheres, elas são sempre menos humanas que um monte de gente, que os homens brancos. Mas também atingimos um grau de sofisticação nessas discussões que não existe uma mulher, são as mulheres.

Não existe uma mulher negra, são as mulheres negras. Tenho alguns atravessamentos, você tem outros. É uma pluralidade muito grande, então acho até um pouco leviano dizer que as mulheres precisam disso e daquilo não. Enquanto a bisavó das minhas amigas brancas estava brigando para sair para trabalhar, a minha já estava na rua. Não dá para fechar os olhos para essa diferença. É um desafio muito grande devolver a humanidade e dignidade a todos e todas.

Quando, há uns anos, a imprensa falou da ascensão econômica da chamada "classe C", pouco se falou dos impactos culturais e mesmo de saúde mental deessa geração que se deslocava. Mabel, em seu livro, vive nesse "não-lugar"?
Sim. No livro, quando Mabel entrou na faculdade, ela tem um estranhamento com os colegas porque é uma faculdade de Medicina. Os "cursos nobres", entre aspas, são caríssimos no Brasil, não dá para trabalhar. É uma elite que entra ali. Se não temos uma pessoa que vem da favela na faculdade de Medicina, quem vai tratar dessa pessoa da favela é esse cara da elite, que vai olhar aquele corpo como uma máquina. Por isso dizemos que o Brasil tem o racismo mais sofisticado e mais eficaz do mundo porque ele se insere nessas nuances para perpetuá-lo.

A escritora Eliana Alves Cruz começou carreira como assessora de imprensa de entidades esportivas - Chico Cerchiaro - Chico Cerchiaro
A escritora Eliana Alves Cruz
Imagem: Chico Cerchiaro

Escrever é um desejo seu desde quando?
Tenho um diário desde os 11 anos de idade, quando dizia que poderia seguir a profissão de escritora. É engraçado porque a gente não se vê nesse lugar, da escritora. Você entra em uma livraria e não se vê nas prateleiras de uma forma maciça. Achei que aquilo não era para mim de jeito nenhum e fui enveredando por outros caminhos. Até que resolvi tentar, e aí a coisa aconteceu.
Mas também queria ser atleta. Queria correr, corria muito quando era criança, queria ir para Olimpíada e para o atletismo. Mas tive um problema no coração, sopro. Então, não aconteceu minha carreira brilhante de atleta. Aí decidi estudar jornalismo: se eu não fosse à Olimpíada correndo, iria escrevendo.

A experiência do esporte foi muito importante para mim. Como jornalista, cobri eventos internacionais, tive contato com gente do mundo todo. Vi a diferença de um corpo branco e um corpo negro em uma piscina; um corpo branco e um corpo negro em uma área de jornalistas. Viajei por 32 países, sei como sou enxergada no mundo todo. Se eu for para a Alemanha, sei como vou pisar naquele território, por exemplo.

Você desfilou no Carnaval, ao lado de outros escritores negros, pela Beija-Flor, que exaltou a intelectualidade negra. Esse Carnaval tocou em outros pontos da cultura e religiosidade negras em muitos temas de outras escolas. O que isso significa?
Carnaval é sempre um termômetro do momento. Foi lindo ver essa retomada a esse recomeço, de um reencontro com a nossa essência mais profunda. O Brasil colocou suas entidades, suas religiões de matriz africana, em um lugar de criminalidade. Isso não tem o menor cabimento.

Não sei em que momento nós nos tornamos tão violentos, intolerantes e caretas. Então, foi um termômetro dessa vontade que as pessoas estão de paz. Afinal de contas, esse estado de guerra cansa. Cansa ter que estar sempre alerta. Viemos de um período muito difícil, muito duro, perdemos muitas pessoas.

Pelo que diz esse "termômetro", o que espera das próximas eleições?
Espero que a gente volte à democracia, que a gente volte a divergir, a brigar em paz. Não sou obrigada a concordar com ninguém, ninguém é obrigado a concordar comigo. Então, o que espero é que a gente retome o lugar do diálogo, do debate.

Também espero que o Brasil se aproxime do que seja bom para todos e todas de uma forma menos brutal do que o que a gente viveu nos últimos tempos.

E que a gente mude de presidente. Não é mais aceitável ligar a televisão e ver uma pessoa debochando de mortes, encontrar um escárnio tão grande, uma banalização tão grande da dor.

Foi a brutalidade e o discurso do ódio profundo que nos trouxeram aqui. O próximo dirigente, seja ele quem for, vai encontrar uma barra duríssima.