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'Sou o poder': desembargador do RS vira réu por ameaçar ex e segue no cargo

O desembargador Carlos Roberto Lofego Caníbal - Eduardo Nichele/TJRS
O desembargador Carlos Roberto Lofego Caníbal Imagem: Eduardo Nichele/TJRS

Franceli Stefani

Colaboração para Universa, de Porto Alegre

09/05/2022 04h00

Acusado de ameaça física e psicológica contra a ex-mulher entre agosto de 2018 e julho de 2019, o desembargador Carlos Roberto Lofego Caníbal, do TJ-RS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul), tornou-se réu por violência doméstica no final de abril, por decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Ele segue trabalhando no cargo.

Em áudios gravados por sua então esposa, quando ainda estavam juntos, e apresentados pela Procuradoria-Geral da República na denúncia, Caníbal diz: 'Eu sou o poder e você não sabe do que sou capaz", na tentativa de, segundo relatos da ex, amendrontá-la e coagí-la a não denunciar o marido. Em outro áudio, segundo a PGR, é possível constatar que ele atirou objetos na direção da esposa.

A defesa de Caníbal foi procurada por Universa. Em nota, o advogado Aury Lopes Jr. diz que seu cliente é inocente e que "os áudios foram trazidos aos autos de forma recortada, selecionada, fora do contexto". O magistrado não concedeu entrevista à reportagem, e a vítima também não se pronunciou.

O TJ-RS não respondeu ao questionamento sobre possíveis medidas em relação ao magistrado no decorrer do processo, limitando-se a responder que não há "nenhuma deliberação nesse sentido" e que ele "segue em atuação"."O processo tramita no STJ, e o TJRS desconhece seu teor", afirmou o órgão.

Suprocurador-geral da República, Carlos Frederico Santos, que apresentou a denúncia, diz que os crimes dos quais Caníbal é acusado são descritos "de modo claro e concatenado", inclusive com detalhes da sua conduta.

A Universa, Santos afirmou que "é comum que os agressores tentem se esquivar da responsabilidade pela violência psicológica no contexto familiar, atribuindo suas condutas ao comportamento da vítima". A PGR fala, ainda, em um depósito com dez armas de propriedade de Caníbal, o que aumentaria a situação de vulnerabilidade da vítima.

Crime de ameaça é formal

Segundo o suprocurador, o posicionamento da defesa vai na linha de que a ex-companheira apresentava "comportamento contraditório", o que, mesmo provado, não invalidaria a degradação psicológica sofrida e "tampouco afasta a caracterização do delito". Ele explica que o crime de ameaça é formal e concretizado a partir da simples intimidação por parte de quem a recebe, fundamentada na intenção do agressor de causar medo e não necessariamente de consumar o mal externado.

"O direito dela é pelo sossego mental, que foi retirado quando ela passou a se sentir amedrontada com as promessas de mal feitas pelo denunciado", finalizou.

Agora, o caso segue para o STF (Supremo Tribunal Federal). O órgão foi procurado e, em nota, afirmou que não vai se manifestar porque "encontra-se em segredo de Justiça".

'TJ poderia ter afastado desembargador por ser réu', diz advogada

Segunda a advogada Gabriela Souza, professora da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres e especialista em violência de gênero, há base jurídica para que o TJ-RS afastasse o desembargador após ele se tornar réu, assim como também poderia mantê-lo no cargo, que foi o que aconteceu. 'Há tribunais que aposentam compulsoriamente seus desembargadores quando se envolvem em situação parecida.

O fato de o processo ser analisado por uma instância superior ao acusado é uma prerrogativa jurídica, explica Souza.

'Denúncia é vaga e imprecisa', afirma defesa

A defesa do desembargador Carlos Roberto Lofego Caníbal, representada pelo advogado Aury Lopes Jr, afirma que irá recorrer e que considera a decisão infundada. Diz que a denúncia é "inepta, vaga, imprecisa e sem qualquer fundamento". "Os fatos não ocorreram dessa forma. Não existiu qualquer ameaça e tudo será esclarecido no curso do processo, se ele vier a existir", ressalta.

Sobre os áudios, afirma estarem "fora do contexto". "Não houve essa manifestação da palavra 'poder' no sentido que o Ministério Público Federal está querendo dar. [...] Nunca existiu agressão alguma, não houve objetos sendo atirados em direção da esposa. Nos trechos trazidos aos autos, se ouve conversas e barulhos, mas não existe ameaça, agressão ou arremesso de objetos. Isso é uma ilação acusatória sem qualquer fundamento."

Em relação às armas em posse de Caníbal, Lopes afirma que " o desembargador possui registro de colecionador e todas as armas estão absolutamente regulares e são legais" e que essa seria "mais uma imputação maldosa e sem sentido algum".

" A alegação de que se sentia ameaçada por ele ter armas e andar armado é absolutamente subjetiva e trazida apenas para subverter o contexto probatório para tentar justificar a premissa acusatória. Ela nunca afirmou, em nenhum momento, que ele tenha feito o uso dessas armas contra ela ou as utilizado para ameaças. Todos esses fatos serão esclarecidos no curso do processo e comprovada a absoluta inexistência do crime imputado. Não existiu crime algum."

Ameaça é considerada violência psicológica

Citada pela Maria da Penha, a violência psicológica é a que faz mais vítimas mulheres no país, superando os casos de agressões físicas. Em 2020, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram 13 milhões de casos, cerca de uma vítima a cada três segundos.

É considerada crime desde julho de 2021, com pena de prisão de seis meses a dois anos. A lei cita como práticas criminosas ameaça, constrangimento, humilhação e ridicularização, entre outros.

Como denunciar violência doméstica

Se você está sofrendo violência doméstica, seja ela física ou psicológica, ou conhece alguém que esteja passando por isso, pode ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo Whatsapp no número (61) 99656-5008.

Para denunciar formalmente, procure a delegacia próxima de sua casa ou então faça o boletim de ocorrência eletrônico, pela internet.

Outra sugestão, caso tenha receio em procurar as autoridades policiais, é ir até um Cras (Centro de Referência de Assistência Social) ou Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) da sua cidade. Em alguns deles, há núcleos específicos para identificar que tipo de ajuda a mulher agredida pelo marido precisa, se é psicológica ou financeira, por exemplo, e dar o encaminhamento necessário.

Também é possível realizar denúncias de violência contra a mulher pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos.