'Tomei antidepressivo para ajudar a cuidar do meu filho': uso é necessário?
Em um grupo de mães que desabafam sobre depressão pós-parto em uma rede social, Ana mostra desespero: o seu psiquiatra recomendou um medicamento para ajudar na cura da doença, mas por estar amamentando ela teme "ficar fora do ar'' e prejudicar "o único vínculo forte que sente pelo filho".
Ao pedir opinião para outras internautas, uma grande quantidade de mulheres, algumas no puerpério, relatam que só conseguem levar a maternidade adiante com auxílio do antidepressivo. Universa conversou com algumas delas. A doula Melissa Marques, de 44 anos, foi uma das que afirmaram no post só ter conseguido de fato viver a maternidade e criar uma conexão com sua filha única, hoje com 10 anos, após acompanhamento profissional.
Mesmo realizando o sonho de ser mãe e vivendo um bom casamento, evitou o contato com a filha por quase um ano. Assim que a menina nasceu, Melissa diz que sentiu desconforto com o momento. Tanto que não tem uma foto com a criança no período.
Achou ainda que não seria a pessoa certa para cuidar da filha, e precisava sempre de alguém por perto para auxiliá-la nas tarefas. Sentiu culpa e chorava o tempo inteiro. Quando se abriu para pessoas próximas, ouviu "isso é bobeira, vai passar."
E ao sentir que estava perdendo o controle, três meses após o parto, ela procurou um psiquiatra.
"Ele viu que eu estava com depressão de moderada a grave, e receitou tratamento. Senti mudanças em dez dias. Mas embora a medicação tenha me curado de todos os sintomas físicos, da tristeza e da angústia, a conexão mesmo com minha filha foi construída no decorrer de um ano, quando fiz uma viagem sozinha com meu marido e ela, sem babá. Ali, assumi que a filha é minha."
Interação entre mãe e bebê
Diferentemente do que Melissa ouviu, depressão é doença: ali há uma desordem neuroquímica do cérebro. E se houver mesmo a necessidade do medicamento, ele vai inibir os sintomas e resgatar substâncias de bem-estar como a serotonina, a dopamina e a noradrenalina, responsáveis pelo equilíbrio, conforme explica Vanessa Gebrim, especialista em psicologia clínica pela PUC de São Paulo.
"O acompanhamento vai ajudar a melhorar a interação entre mãe e bebê, além de tratar esse lado emocional da mulher, fazendo com que ela se sinta preparada afetivamente para aquele momento", conclui.
"Tratamento me mantém em pé"
A enfermeira Nicole*, 38, viveu duas gestações não planejadas: aos 16 anos e em 2021. Moradora de Petrópolis, na região serrana do Rio, foi expulsa de casa pelos pais na adolescência por causa da filha e sofreu violência doméstica do pai da criança na época. E quando começou a se relacionar com o pai de seu caçula, há quatro anos, descobriu que ele teve uma filha fora do relacionamento, e está em processo de separação.
Além de toda essa trajetória, teve diabetes gestacional e passou por um parto prematuro, com 37 semanas. O neném, hoje com 4 meses, ainda ficou uma semana na UTI, e diante de todo o aborrecimento gerado o corpo de Nicole reagiu e chegou a tremer de estresse.
Para acalmá-la, a psicóloga de plantão no momento do parto receitou um antidepressivo ali mesmo, sem diagnóstico. Mas assim que saiu do hospital, Nicole buscou acompanhamento médico, e hoje segue em tratamento.
"Ele tem sido muito importante para me manter de pé. Porque depois de todo esse estresse, só chorava nas primeiras semanas. Somente com o antidepressivo e o acompanhamento consigo raciocinar e cuidar do meu filho", ela afirma.
Nem todas precisam de antidepressivo
Mãe de quatro, sendo dois gêmeos, a psiquiatra Danielle Admoni explica que alguns questionamentos como o medo de não saber cuidar do filho acontecem mesmo, mas nem por isso a mãe está com depressão e precisa tomar medicamentos. Ela pode estar precisando de uma rede de apoio.
"É um período difícil, em que a mãe é muito exigida. E é tão importante uma rede de ajuda, seja um vizinho, o companheiro ou a companheira. Até porque, muitas vezes, a mãe não percebe que não está bem", atenta a especialista em infância e adolescência pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) e membro da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria).
"Criamos uma nova história"
Bruna Ament da Silva, 32, diz que fez tudo "praticamente no automático" até os 2 anos do seu filho. E sete anos após o parto, estudou psicanálise para ajudar outras mães que passam por esse processo.
Moradora de São Paulo, ela conta que a gravidez a pegou de surpresa. Casada, diz que estava focada na carreira, na área de recursos humanos, e chegou a entrar em negação sobre a gestação, mantendo a rotina intensa no trabalho e usava as mesmas roupas e saltos.
"Senti o tratamento no local de trabalho, principalmente dos gestores, mudar após comunicar a gestação, e isso me fazia pior, porque pensava que não seria capaz de corresponder as expectativas da empresa. Até começar a perder líquido, aos sete meses, e precisar me afastar por uma semana. Foi ali que caiu minha ficha e me dei conta de que estava grávida. Foi a primeira vez em que coloquei a mão na barriga, conversei com meu filho e pedi perdão", conta.
No dia do parto, mais uma ficha caiu: Bruna sequer tinha feito o enxoval da criança. Sua mãe quem providenciou tudo, e ficou com ela no hospital. "Lembro de pegar meu filho e de não sentir nada", Bruna descreve.
Era tudo mecânico. Fazia o que tinha que fazer. Não havia envolvimento afetivo, mas um senso de responsabilidade e um grande peso e culpa por sentir isso. Bruna Ament da Silva
Preocupada com o trabalho e ainda na tentativa de negar a maternidade, ela fala que conseguiu um outro emprego, colocou o filho num berçário e voltou a trabalhar sem completar os quatro meses de licença-maternidade. "Por causa disso, não tenho memória do meu filho nos dois primeiros anos. Não lembro de um banho, de uma brincadeira."
Com o passar do tempo, a criança começou a apresentar traços de agressividade, e os professores da escola onde ela ficava chamaram a atenção de Bruna. Foi quando ela se deu conta de que a família precisava de ajuda, e levou marido e filho para um analista.
"A ajuda profissional me fez entender a minha história, porque fui criada num ambiente muito violento, com pai alcoólatra e uma mãe com muitos traumas da infância e sobrecarregada por causa do vício do meu pai. Eles não tiveram recursos para exercer os papéis de pais de maneira adequada, e Isso trouxe consequências para meus relacionamentos e maternidade", ela observa.
Além do antidepressivo, a psiquiatra recomendou uma conversa franca entre mãe e filho, e foi ali, aponta Bruna, que deu-se a virada de chave. Hoje ela segue na análise, ainda com apoio de medicamentos. "Expliquei para meu filho que a mamãe não sabia que ia ficar grávida e por isso teve medo e não sabia dizer 'eu te amo'".
Fui dando espaço para uma nova história com meu filho e hoje nos comunicamos muito.
"Histórias precisam ser ouvidas"
Mestra em psicologia social pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), a doula e acompanhante terapêutica Ana Carolina Dias Ramos concorda que em muitos casos de intenso sofrimento psíquico a medicação serve como uma das ferramentas de cuidado, mas que ela nunca deve ser a única e a primeira possibilidade. Antes, Ana frisa, é necessário ouvir as histórias por trás de suas dores:
"É preciso pensar de que forma o excesso da medicação silencia os corpos que parem. Acho que a pergunta a ser feita é: enquanto sociedade, como estamos construindo redes de apoio para que o cuidar seja um processo coletivo e não solitário."
Ela, que atuou por quase uma década em hospitais psiquiátricos e outras redes de saúde mental, atenta ainda para o fato de a indicação medicamentosa levar ao que chama de "uniformização afetiva":
"A psiquiatria pressupõe que nossa biologia agirá da mesma forma com o uso do remédio, sendo que cada uma tem um jeito único de elaborar suas relações e situações de estresse e raiva", Ana Carolina explica.
"A relação que uma mãe pode estabelecer com o filho não necessariamente é essa relação ilusória, esse mito do amor materno descrito no livro da filósofa francesa Elisabeth Badinter, mas pode vir a ser uma relação saudável e de parceria onde o cuidado do bebê é encarado como responsabilidade social", finaliza.
*A identidade foi preservada a pedido da entrevistada
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