Chimamanda no Brasil: choque com 'escravidão moderna' e amor pela ficção
A entrevista coletiva com a imprensa foi no dia 13 de maio —data marcada pela assinatura da Lei Áurea. Uma abolição iniciada e nunca concluída. Chimamanda Ngozi Adichie não sabe o significado da data no Brasil, mas um breve panorama é apresentado a ela.
Logo na primeira pergunta, a escritora nigeriana ouve sobre o caso de uma senhora negra que foi resgatada após 72 anos em situação análoga à escravidão —a idosa está sob os cuidados da Prefeitura do Rio de Janeiro desde março. Chimamanda fica em choque, pergunta se isso é algo comum. "Não sabia sobre essa 'escravidão moderna' no Brasil", diz. "Quando nos pedem para esquecer o passado, esquecer a escravidão, é porque essas pessoas não querem se responsabilizar, não querem se sentir responsáveis pelo presente."
Chimamanda veio ao Brasil para participar do LER (Salão Carioca do Livro). Na noite deste sábado (14), conversa com a escritora Djamila Ribeiro sobre como contar histórias empoderadoras. Um encontro com duas divas pop do feminismo negro não podia dar em outra: os ingressos do evento, distribuídos gratuitamente, esgotaram em poucas horas.
Na coletiva, realizada no auditório do hotel onde está hospedada, em Ipanema, Chimamanda passeia por diversos assuntos, fala sobre as periferiras de Lagos, na Nigéria, seu país de origem, a importância de se contar novas histórias, vibra quando a perguntam sobre moda e cabelo, mas aborda, basicamente, feminismo e questões raciais.
Diz que muitas pessoas ainda enxergam o feminismo como algo acadêmico e discorda frontalmente. "Prefiro não usar termos como interseccionalidade", confessa. Não porque desmereça o conceito cunhado por Kimberlé Crenshaw, mas porque acredita que certas palavras podem causar distanciamentos. Chimamanda quer construir pontes.
"Feminismo não tem a ver com histórico educacional"
Entre as respostas às perguntas, cita sua bisavó que, só em levar a vida de forma independente, alheia aos rótulos da sociedade nigeriana, era uma feminista, mesmo sem saber. "Feminismo não tem a ver com o seu histórico educacional", comenta. A autora faz questão também de criticar uma visão feminista que ignora os saberes ancestrais e a realidade do continente africano, tomando o Ocidente como o único centro possível: "O feminismo ocidental é o mais documentado, não necessariamente o primeiro".
Durante a conversa, tenho a impressão de que Chimamanda ainda é vista como uma espécie de oráculo, consultanda sobre as soluções de todos os nossos problemas sociais. É bem verdade que a escritora entrou nessa discussão quando começou a escrever ensaios e dar palestras sobre feminismo e colonialismo, mas em todo momento ela repete: "A ficção é o grande amor da minha vida".
Intelectual, sim. Mas sobretudo escritora
Chimamanda encontra jeitos diferentes, em diversas perguntas, de dizer: me perguntem sobre ficção, me indaguem sobre o que quero criar, sobre minhas inspirações, sobre linguagem, mesmo sem dizer isso propriamente. Com muita elegância e delicadeza, parece querer se desvencilhar desse rótulo de intelectual. Ou, melhor, intelectual, sim, mas sobretudo escritora.
Uma escritora que vem encontrando dificuldades para escrever. Não que isso se reflita na qualidade de seu trabalho."Notas Sobre o Luto" (ed. Companhia das Letras), último livro lançado no Brasil, é um mergulho profundo sobre uma dor que todos nós invariavelmente vamos enfrentar um dia, se já não enfrentamos. Chimamanda divide com o público toda a visceralidade desse período pelo qual ela ainda está passando; a morte de seu pai, em 2020, e de sua mãe, em 2021, são uma ferida aberta. Ela diz "não sou mais a mesma pessoa" como quem dissesse: ainda não consigo acreditar que isso aconteceu.
No entanto, a dificuldade de Chimamanda em escrever é de outra ordem. Vem antes dessa dor profunda. Ela conta que se iniciou, talvez, com o nascimento de sua filha, hoje com 6 anos, o que impõe uma nova logística à sua vida. Há menos espaço, menos tempo. E o seu sucesso editorial também demanda uma rotina muito exaustiva. "É um desastre para minha carreira. A ficção simplesmente não está acontecendo", responde ela à minha pergunta. "Não me entendam mal. Tenho muito orgulho dos meus ensaios, mas meus romances são o grande amor da minha vida".
E é de se notar. Quando chegou ao auditório, a mesa de apoio entre sua poltrona e a da tradutora Rane Souza, também uma mulher negra, continham apenas água e a edição brasileira de seus livros de ensaios: "Sejamos Todos Feministas", "Notas Sobre o Luto", "O Perigo de uma História Única" e "Para Educar Crianças Feministas". Enquanto Rane traduz ao público suas falas, Chimamanda aproveita para folheá-los, reparar na edição. Ela sorri.
Contudo, quando os editores entregam a ela seus romances —"Hibisco Roxo", "Meio Sol Amarelo" e "Americanah", o corpo reage. Difícil não reparar a diferença. "É como se eu estivesse pulando internamente", brinca. "Só em vê-los, já estou feliz". Todos os livros dela foram publicados no país pela Companhia das Letras.
No fim da noite, em um evento privado, digo a Chimamanda que essa provavelmente foi a entrevista coletiva de imprensa que ela participou com mais jornalistas negros no Brasil; ela confirma. Parte disso é esforço da própria escritora, que faz questão de salientar publicamente como está sempre rodeada de pessoas brancas quando nos visita.
Do limão que Chimamanda ofereceu, Thaís Britto, assessora de imprensa da Companhia das Letras e também uma mulher negra, fez uma limonada: pensou em uma lista de convidados para a coletiva não só com uma quantidade expressiva de jornalistas negros, mas que envolvesse também veículos independentes, como ANF (Agência de Notícias das Favelas), Perifa Connection, AzMina, entre outros. São nesses veículos independentes que a maioria de nós, negros, estamos e, se acostumem, é justamente a nós que Chimamanda quer ouvir.
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