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'Era humilhada por ter deficiência mental; hoje tenho livro publicado'

Ketlin se formou em tecnologia de gestão de recursos humanos - Arquivo pessoal
Ketlin se formou em tecnologia de gestão de recursos humanos Imagem: Arquivo pessoal

Ketlin Tainara Schneider, em depoimento a Roberto Saraiva

Colaboração para Universa, de São Paulo

14/05/2022 04h00

"Tive a sorte de viver uma infância tranquila, cercada de mato e de natureza com meus pais e meu irmão em Estrela, no interior do Rio Grande do Sul. Moro no bairro São Jacó Baixa, uma área interiorana com vizinhos queridos que se conhecem e são praticamente da família. Aqui tem até uma cascata, a Santa Rita, me criei nela, era feliz e sabia.

Perdi meu chão aos 12 anos, no 5º ano da escola, quando descobri em uma avaliação neuropsicopedagógica que tinha uma deficiência mental leve. Não quis acreditar, foram anos de não aceitação, sem vontade de saber de nada, sem vontade de viver a vida. Me tornei uma adolescente de poucos amigos —os quatro da época seguem comigo até hoje. Namorar, não queria.

No Ensino Fundamental sofria com bullying pesado dos colegas todos os dias. Eram deboches das gurias e risadas dos guris. Eu não sabia falar direito, precisava colocar um palito entre os lábios para não ficar de boca aberta. Fazia provas diferentes das deles, e aí vinham a humilhação, as piadas e os gritos.

O Ensino Médio foi ainda pior. Tinha dias em que chorava para meus pais porque não queria mais ir à aula sofrer a noite inteira com xingamentos e palavrões. Ouvi da minha mãe: 'Enfrente, erga a cabeça e seja forte, se tu parar de ir na aula não vai terminar o Ensino Médio e não vai ser ninguém na vida'. No fim ela tinha razão. Encarei três anos daquilo, me escondendo na biblioteca quando o deboche se tornava insuportável.

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Ketlin descobriu em uma avaliação neuropsicopedagógica aos 12 anos que tinha deficiência mental leve
Imagem: Arquivo pessoal

'Na faculdade, finalmente me senti incluída'

A faculdade foi um respiro. Estudei tecnologia de gestão de recursos humanos na universidade particular La Salle, aqui em Estrela. Queria trabalhar com RH, especialmente com seleção. Finalmente me senti incluída nos trabalhos em grupo e recebia ajuda dos colegas quando precisava. Faltavam apenas três dias para a minha formatura quando a pandemia veio e mudou tudo de novo.

Na época trabalhava em um supermercado, mas meu contrato foi suspenso com a quarentena. Estava lá eu trancada em casa, sem poder me formar na faculdade, ansiosa e engordando de tanto descontar na comida. Por sorte, vinha de três anos de mais aceitação da minha condição, me acostumando e até me amando como alguém que tinha uma deficiência. Saía mais, lia e estudava muito, conversava comigo mesma no espelho, me descobria novamente.

Meu maior sonho era me formar e escrever um e-book, mas não sabia sobre o quê. Uma noite sonhei com o nome, uma mensagem de Deus, do meu anjo da guarda: 'A Borboleta que Aprendeu a Voar Sozinha', escrevi num guardanapo ao acordar no meio da madrugada.

No outro dia chamei meus pais, disse 'vou escrever um livro', e comecei a rascunhar no meu caderno. Queria falar da minha vida, da minha biografia, e ajudar pessoas como eu.

Foram nove meses escrevendo à mão, e mais um mês transcrevendo para o computador. Fiz tudo sozinha todas as noites. Pesquisando sobre a doença, checando artigos científicos, lendo muitos livros do doutor Augusto Cury. Meu livro foi bastante inspirado pelo trabalho dele, quero um dia conhecê-lo e também escrever mais de 50 obras. Minha estreia ficou com 115 páginas. Mostrei para os meus mentores e eles me presentearam com o e-book dele no início de 2021.

Fiquei feliz com as vendas de 'A Borboleta que Aprendeu a Voar Sozinha' no Linkedin. Brinco que lá é a minha segunda casa. Foi a porta de entrada para eu começar a vender meus livros a distância, mas também é onde aprendo a fazer networking, a me organizar para ter um trabalho próprio. Não é só uma ferramenta para encontrar emprego.

O livro foi resultado desse ano e meio de ansiedade e de gula, de poucos amigos ao redor, isolada com a minha família em casa. Foi triste não ter conseguido me formar e fazer a festa de formatura dos sonhos naquele momento. Mas foi mais uma oportunidade de descoberta de mim mesma, de encontrar esse dom de escrever, esse otimismo.

Sonho ter esse livro reconhecido no Brasil inteiro por professores, empresas, setores de RH, mentores e palestrantes. Que ele voe como uma borboleta. Quero vê-lo nos jornais, nos programas de TV da Fátima Bernardes, da Ana Maria Braga. Quem sabe ser reconhecida pelos famosos, como Thiago Brava, Latino, Lucas Lucco, Felipe Neto, Gkay, Carlinhos Maia, Bianca Boca Rosa. E ter muitos seguidores no Instagram e no Linkedin. Ajudar pessoas com deficiências de qualquer tipo, sei como é difícil para elas.

Ketlin - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ketlin Schneider: 'Infelizmente as empresas ainda são muito fechadas para profissionais como eu. Também quero ajudar a mudar isso'
Imagem: Arquivo pessoal

A formatura veio finalmente em setembro de 2021, uma grande emoção. Já sou gestora de recursos humanos e escritora, mas posso ir muito além dos meus sonhos. Emendei uma pós-graduação na área para me atualizar enquanto procuro um cargo em home office no setor.

Infelizmente as empresas ainda são muito fechadas para profissionais como eu. Também quero ajudar a mudar isso.

Meu segundo livro está pronto, é sobre a minha mãe. Conto como ela descobriu a minha deficiência e todo o processo da sua gravidez. Só falta levar para a editora. E já tenho planos para um terceiro, desta vez sobre diversidade e inclusão na área de recursos humanos. Sei que o começo dessa caminhada é solitário, é tu por ti mesma. Mas também sei que depois vem mais gente querendo ajudar."

Ketlin Tainara Schneider, 27 anos, é escritora, gestora de recursos humanos e mora em Estrela (RS)