Ex-trabalhadora doméstica pode ser 1ª vice-presidente negra da Colômbia
Pela primeira vez na história da Colômbia, uma mulher negra pode chegar ao Executivo e ser vice-presidente do país. Com reais chances de vitória, a advogada e ativista ambiental Francia Márquez está na chapa do senador de esquerda e ex-guerrilheiro Gustavo Petro, da coalizão Pacto Histórico e favorito em todas as pesquisas eleitorais.
A duas semanas do primeiro turno das eleições, que ocorrerá no dia 29 de maio, o líder da esquerda está à frente com 36,64% das intenções de voto em enquete eleitoral da empresa TySE, divulgada nesta segunda-feira (16). Seu rival, Federico Gutiérrez, da coalizão de direita Equipo por Colombia, tem 21,40%.
A elite política colombiana, que tradicionalmente governa o país, está em descrédito —o atual presidente, o conservador de Iván Duque, enfrentou uma onda de protestos no ano passado, inicialmente contra uma reforma tributária, que durou um mês.
Márquez, por outro lado, representa um "ar fresco" na política: a advogada de 40 anos é ativista ambiental e nasceu na comunidade de La Toma, de maioria negra, na cidade de Suárez, em Cauca, um dos estados mais pobres e com maiores índices de violência da Colômbia.
Premiada internacionalmente
Em 2018, ela ganhou o Prêmio Goldman, conhecido como o "Nobel do Meio Ambiente", por sua luta ambiental na região. Também foi representante legal do Conselho Comunitário de La Toma, entidade que exige a proteção dos territórios ancestrais negros da Colômbia. No ano seguinte, em 2019, a advogada foi alvo de um atentado com granadas e rajadas de fuzil em represália à sua militância.
Formada pela Universidade Santiago de Cali, Márquez trabalhou na adolescência como garimpeira na mineração de ouro — assim como seus pais. Depois, exerceu o ofício de trabalhadora doméstica para pagar seus estudos e sustentar sua família. Ela é mãe solo e tem dois filhos —teve o primeiro aos 16 anos.
Em discursos durante a campanha, Márquez afirmou que, em caso de vitória, vai trabalhar pelas mulheres, negros, indígenas, camponeses e pela população LGBTQIA+.
Luta contra mineração ilegal
Márquez se tornou uma ativista aos 13 anos, quando começou uma mobilização, com sua comunidade, contra projetos do governo que alterariam o curso do rio Ovejas, um dos maiores e mais importantes da bacia hidrográfica da região.
Em 2014, esteve à frente de um movimento de mulheres que caminharam por dez dias de La Toma até Bogotá para pressionar o governo colombiano a interromper a mineração ilegal na região, que estava causando impactos negativos para a saúde, meio ambiente e comunidades do entorno. A atividade gerou mais de 30 toneladas de mercúrio despejadas nas águas desta região, poluindo uma área de 230 km.
O ativismo contra a mineração ilegal rendeu a Márquez o Prêmio Nacional de Defesa dos Direitos Humanos na Colômbia, em 2015. Três anos depois, ganhou o Prêmio Goldman. Em entrevista ao jornal colombiano "El Tiempo'', na ocasião em que recebeu a homenagem internacional, afirmou que estava convencida em seguir com seu trabalho social.
"Não é um prêmio apenas para a Francia, mas para uma luta de toda a minha vida, para as mulheres que marcharam comigo, para a comunidade, para as pessoas que morreram defendendo a vida."
Ameaçada de morte, teve que sair da região em que nasceu
Após ser ameaçada de morte, ela saiu da região em que nasceu. "Tive que me deslocar por enfrentar a mineração ilegal e por dizer a eles que parassem as máquinas. Tive que me esconder nas casas de outras pessoas e depois deixar meu território. Ainda estou em condição de deslocamento forçado e tenho um esquema de proteção com o qual também tive problemas devido a questões como combustível ou conserto de pneus", relatou, em 2018.
A Colômbia é o país mais perigoso para ativistas ambientais na América Latina e no mundo. Segundo o último relatório da Global Witness, organização inglesa que monitora todos os anos atos de violência contra esses líderes, 65 ativistas foram mortos no país em 2021, número que leva o país à liderança global de casos.
Sofreu ataque promovido por adolescente
Em maio de 2019, Francia Márquez e um grupo de líderes sociais da Associação de Conselhos Comunitários do Norte de Cauca sofreram um atentado em Santander de Quilichao, enquanto se preparavam para uma reunião com o governo.
De acordo com Francia, o grupo foi atacado com homens munidos de armas e granadas. Ela não ficou ferida. As investigações atribuíram o ataque a um adolescente de 17 anos.
Na moda: escolhe estampas africanas e cores fortes
Além do ativismo ambiental, a líder comunitária chamou a atenção por outro assunto: moda. Suas roupas e estilo são peça-chave nas suas aparições públicas e são usadas como maneira de passar uma mensagem.
A candidata à vice-presidência aparece nos palanques e debates com estampas africanas e cores fortes, reforçando suas raízes negras. Frequentemente, ela também é vista com tranças e usa pulseiras e acessórios que remetem às religiosidades afros, como búzios.
Em análise ao estilo da candidata, a pesquisadora de moda Jeniffer Varela afirmou ao jornal "El Espectador'' que o estilo tem sido um grande acerto de Márquez: "A identidade de Francia marca de onde ela é, uma mulher cujo lema de campanha é 'Sou porque somos'. Ela também está mostrando quem é e que não precisa mudar por causa da campanha", analisou.
"Muitas colombianas não somente se vestem como Francia Márquez como também já foram discriminadas ou não foram aceitas em diversos lugares por se vestir como ela."
Vítima de racismo, foi chamada de "King Kong"
Além de Márquez, quatro outros candidatos à vice-presidente da Colômbia são negros —ela é a única mulher negra no páreo. O fato inédito na história do país tem gerado também episódios de racismo. A Colômbia tem 50 milhões de habitantes e 9,3% da população se reconhecem com negros.
Ela recebeu diversas ofensas racistas nas redes sociais. A cantora colombiana Marbelle, por exemplo, que é branca, chamou a ativista de "King Kong" em uma publicação do Twitter.
Uma senadora de direita, María Fernanda Cabal, por sua vez, fez um comentário irônico em que dizia que Francia (que em espanhol é a mesma palavra usada para se tratar do país França) deveria ser "coerente" com sua trajetória contra o racismo e mudar seu nome, já que ele fazia referência a um país colonizador e escravocrata.
Além de ataques racistas, também foi alvo de campanhas de desinformação. Em março, por exemplo, a imagem de uma mulher usando um lenço do ELN (Exército de Libertação Nacional) foi atribuída à ativista, sugerindo que ela pertenceria à guerrilha. "E aqui está Francia Márquez, ela não é tão inofensiva quanto algumas pessoas pensam", dizia uma das montagens.
Revelação da campanha eleitoral
Mesmo sob ataques, Márquez permanece como a revelação política desta campanha na Colômbia e tem assumido papel importante na reta final das eleições, já que Gustavo Petro, cabeça da chapa, foi ameaçado e deixou de participar de alguns eventos públicos no último mês.
Em entrevista publicada no domingo (15) ao jornal "El Espectador", um dos principais da imprensa colombiana, Petro afirmou que a figura de sua candidata à vice está crescendo. "Ela acumulou uma luta social, mas não era visível para a sociedade", disse.
"Quanto mais visível se torna, mais simpatia acumula. Ela é uma figura em ascensão."
Crítica a companheiro de chapa por não apoiar aborto
Petro, da coalizão de esquerda, se direcionou nos últimos anos mais ao centro. Márquez, por sua vez, tem trazido o candidato mais próximo da esquerda e das pautas feministas —inclusive, criticando abertamente o companheiro de chapa.
Em um debate presidencial, por exemplo, ele se esquivou em mostrar publicamente apoio ao aborto (direito que foi garantido no país recentemente), dizendo que pressionaria por programas de prevenção da gravidez que levariam o país ao "aborto zero".
No mesmo palco que seu aliado, Márquez o questionou: "Quantas mulheres terão que morrer, quantas mulheres terão que passar por essas situações dolorosas até chegar o 'aborto zero?"
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