'Palavras eram piores do que soco na cara', diz vítima de abuso emocional
São os casos de agressão física e de feminicídio que normalmente ganham foco quando o assunto é violência contra a mulher. No entanto, há outras nuances dentro do que podem ser consideradas ações violentas e que também estão presentes na rotina de muitas brasileiras —mais especificamente, em uma a cada três segundosm segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Aparece como uma fala em tom mais seco, uma repreensão por algo simples, uma cobrança exagerada ou uma brincadeiras depreciativa, tudo isso feito de maneira recorrente, e podem ser sinais de que há um problema na relação.
Foi notando essas situações que Alessandra Vidmontas, 37, especialista em gestão social e cofundadora da organização Beleza Escondida, que há 22 anos ajuda mulheres vítimas de violência em Curitiba, começou a perceber que sua relação não era saudável. "Acredito que nem eu nem ele sabíamos o que estava acontecendo, que tinha até um termo para isso —violência psicológica. Só fui entender o que vivia depois de entrar para a organização", reflete ela, apontando para a falta de informação sobre o tema.
De acordo com dados recentes extraídos do Radar da Proteção Beleza Escondida, já foram registrados, no Brasil, 4.451 feminicídios —mortes que, muito provavelmente, começaram com abusos emocionais. Em contraponto a esses altos números, de 5.570 cidades do Brasil, existem apenas 95 casas de proteção para vítimas e seus filhos, sendo estas distribuídas em 80 cidades.
Com esses dados em mente, além de sua vivência na instituição e sua própria experência como vítima, Alessandra começou a rascunhar seus pensamentos para criar um livro. Com o tempo, percebeu que precisava de mais vozes diferentes da dela. Agregou outros nomes ao projeto, que ganhou corpo e se transformou no livro "Rosas e Espinhos - Mulheres que Ressignificaram Suas Histórias" (ed. UICLAP).
"Meu ex me enviou caixa com alimentos estragados"
"Com os atendimentos na Beleza Escondida, comecei a perceber que o meu então companheiro utilizava palavras que me diminuíam. Quando eu estava indo bem na carreira e ele não, apontava minhas falhas. Um dia que chegou a falar que iria acabar com a minha vida. As palavras dele eram piores do que um soco na cara", relembra Alessandra, que não quis denunciar e pedir uma medida protetiva, pois achava que "não era para tanto".
Ao entender que a relação era abusiva, Alessandra decidiu terminar. Bloqueou o ex-companheiro nas redes sociais e pediu a amigos e familiares que fizessem o mesmo. Mesmo assim, ele continuava tentando contato. "Teve um episódio que recebi uma entrega dele, depois de um tempo separados: uma caixa com alimentos estragados e todos os presentes que tinha dado para ele, todos destruídos. Isso aconteceu no meu trabalho e eu fiquei com muita vergonha", aponta a autora.
"Ele não me agrediu fisicamente, apenas verbalmente e, muitas vezes, eu relevava. Hoje, vejo que é um padrão, pois muitas mulheres têm vergonha ou não acham que precisam de ajuda e que o parceiro vai mudar. Ensino para elas que é preciso demonstrar o incômodo com a situação e colocar limites para fazer a pessoa entender que ela não pode ir além."
Ao escrever o livro, Alessandra ouviu centenas de histórias para selecionar algumas que entraram na obra. "Em vários momentos eu pensava: 'Como essa mulher está viva?'. Vi casos de cárcere privados, violência física, psicológica, reincidência de crimes, coisas horríveis", recorda ela. "É surreal como muitas delas tiram forças para continuar seguindo em frente."
Claudia Leitte assina prefácio de livro
Foi pensando no crescimento do diálogo sobre violência contra a mulher que Alessandra convidou a cantora Claudia Leitte, madrinha da Beleza Escondida desde 2019, para assinar o prefácio do livro e dar mais visibilidade à obra e ao tema. "Me senti muito tocada por cada página que li e, no fim, o que tiro disso tudo é que nós precisamos entender que cada história é única, mesmo existindo seus padrões. Eu me expus escrevendo o prefácio, porque fui inspirada e motivada e acabei me conhecendo mais por meio desse projeto", conta Claudia.
"Sou uma artista e minha voz é ouvida por muitas pessoas. É um dever que carrego comigo de levar informações para quem ainda não sabe, não entendeu, e que precisa de ajuda", diz a cantora.
Alessandra afirma que o livro foi um processo de escrita curativa, pois ela foi colocando para fora seus pensamentos e enxergando melhor as alternativas para recomeçar. "A ideia de lançar um livro veio da vontade de falar com outras mulheres e fazer com que elas possam se conhecer mais e ver se estão passando por situações citadas nas páginas. A Beleza Escondida é uma organização que está mais para a prática, para o acolhimento. Essa obra nasceu, de certa forma, como um manual, também prático, de como agir para se defender."
Ela também dâ ênfase à importância do apoio das pessoas próximas à vítima para que ela saia da situação de abuso. "No meu caso, contei com minha família. Mas as mulheres que chegam no Beleza Escondida não têm isso. É nosso dever recebê-las e ajudá-las para que elas possam construir novos caminhos. Precisamos falar mais sobre educação e procurar novos espaços para dialogar, espalhar informações, além de refletir sobre nossa responsabilidade com as próximas gerações", diz Alessandra.
Como procurar ajuda
Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo WhatsApp no número (61) 99656-5008.
Também é possível buscar ajuda nos CRAs (Centro de Referência de Assistência Social) ou CREAs (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) da sua cidade. Outra opção é a Casa da Mulher Brasileira. Os lugares contam com equipe especializada para ouvir e atender as vítimas conforme a necessidade de cada uma.
Se a intenção for denunciar um episódio de violência, a orientação é procurar uma delegacia, de preferência da mulher, para registrar uma ocorrência.
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