'Faz um ano que não vou ao mercado', diz moradora da região da cracolândia
Dona Lurdes* vive no centro de São Paulo há 50 anos. No mesmo prédio, há 20. A percepção de que a região se deteriorou não é recente, mas faz um ano que ela abandonou atividades cotidianas, como ir ao mercado, sair para rezar ou mesmo fazer caminhadas. Como grande parte das pessoas que vivem na região da cracolândia, está assustada.
"O perigo está para todos, mas eles atacam mais mulheres e pessoas idosas", afirma ela, que tem 75 anos, referindo-se aos usuários de drogas que circulam pela região e, com frequência, abordam pedestres.
Ela vive perto da praça Princesa Isabel, ocupada por usuários de drogas e traficantes há anos. O local foi alvo de operações policiais no dia 11 de maio, cujo objetivo era dispersar o fluxo. Os usuários de droga, então, espalharam-se e agora estão, em maior número, nas ruas Helvétia e Frederico Steidel, mas também em outras partes do centro.
"[A região] continua insegura, apesar de eles terem saído daí", conta Lurdes, apontando para a praça. "Ainda não está seguro sair na rua. Eu frequento um culto de testemunhas de Jeová, mas parei. Agora, só por vídeo. Não dá mais para ir para lá", conta. O local fica na rua Barão de Tatuí, em Santa Cecília, bairro vizinho.
A idosa relata ter visto vídeos de crimes cometidos na região, eventualmente com armas brancas. Com medo de ser assaltada ou agredida, ela pede a ajuda ao filho quando precisa de algo da rua. "Faz praticamente um ano que eu não vou ao mercado sozinha. E não sou só eu, as mulheres aqui também não vão, elas mandam os maridos. As que não têm marido fazem compras pela internet."
A vida de Maria Edinalva também mudou de forma radical. Ela afirma que os moradores do centro perderam o direito de ir e vir. Com lágrimas nos olhos e voz embargada, ela revela que a preocupação é ainda maior por ser mãe de três.
"Meu filho de 15 anos foi ameaçado no mês passado, quando ia para a escola. Ele pega ônibus aqui em frente, estava com a mochila nas costas, celular dentro. Um casal ameaçou atirar na cabeça dele."
As imagens foram gravadas por câmeras de segurança, e Maria Edinalva teve acesso a elas. Ela vive na região há 25 anos e tem uma padaria. Em frente ao local, há diversos moradores de rua, vivendo em barracas.
As filhas, uma de 12 anos e outra de 8 anos, estudam também no centro e costumavam ir para a escola de bicicleta. A rotina teve de ser alterada depois que uma delas foi perseguida quando voltava da aula. "Os caras correram atrás dela. A sorte é que ela foi mais rápida, chegou aqui, e os meninos [da padaria] socorreram", conta. Agora, os pais levam e buscam as meninas.
Nós estamos presos dentro de casa. Conforme vai chegando o horário de ir para a escola, vai começando a preocupação. Será que vai dar tudo certo? Será que eles vão voltar em paz? Minha filha menor adorava ir para a escola pedalando. Era uma alegria e uma aventura para ela. Agora não vai mais. Não temos o direito de ir e vir.
Como mãe, ela diz que se sente impotente. "Não sei como protegê-los, sinto que não tenho como fazer nada. A gente perdeu a nossa independência, e estou perdendo minha saúde emocional."
Apesar de pensar em deixar a região, Maria Edinalva sabe que os imóveis que a família tem estão desvalorizados, o que dificulta a mudança.
Com a saída da praça Princesa Isabel, houve uma dispersão dos usuários de droga, que estão hoje nos bairros de Santa Cecília, Vila Buarque e Higienópolis -embora a situação não seja tão intensa quanto no centro. Os riscos, no entanto, ainda assustam mulheres cujos filhos estudam na região.
Andreia Buccini tem um filho de 12 anos e costumava deixar o menino sair da escola e ir sozinho até um shopping, que fica a cerca de duas quadras do colégio. Com a deterioração da situação, a qualquer lugar que o filho vá, Andreia vai também.
"Entrei até em alguns grupos de WhatsApp com moradores da região para acompanhar as notícias. De uns dois meses para cá, não está dando", afirma. A rotina mudou, mas ela diz que se sente bastante insegura. No caminho para buscar o filho na escola, Andreia teve dois sustos: presenciou um assalto em Santa Cecília e, ao estacionar, viu uma moradora de rua batendo num carro, pedindo dinheiro.
O crime presenciado por ela foi uma tentativa de assalto, que acabou com um idoso esfaqueado na avenida Angélica. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, os roubos no bairro de Santa Cecília aumentaram 137% em abril, em comparação com o mesmo período de 2021.
'Venho sozinha, com Deus'
Lucia Nascimento trabalha em uma padaria na rua Helvétia, perto de um dos focos da cracolândia. O local tem grades grossas na frente, instaladas após tentativas de furto de bicicletas, usadas para fazer entregas. Faz poucos meses que Lucia começou o trabalho e só aceitou por falta de opção.
"É assustador! A sensação é que eles podem nos atacar a qualquer momento. Ando sempre atenta e dou a volta para o outro lado para conseguir chegar aqui. Venho sozinha, com Deus", afirma. "Não posso deixar de trabalhar, tenho que ir me cuidando."
Recentemente, Micaeli Brito também aceitou um emprego na região. Ela trabalha em um hostel na avenida Duque de Caxias e chega às 6h. "Comecei neste mês, no dia da dispersão da cracolândia. Foi bem assustador", conta. "Aqui é onde está tendo demanda de trabalho. Estava buscando algo desde dezembro, e agora apareceu."
Na alameda Barão de Limeira, Camila Souza, que trabalha no caixa de uma padaria, afirma que a situação piorou muito na região depois que a cracolândia se instalou pela primeira vez na praça Princesa Isabel.
A região está muito perigosa. Outro dia tentaram me assaltar, mas eu consegui fugir. Saí correndo e gritando socorro. Para as mulheres é pior, com certeza. Acho que veem a mulher como mais vulnerável, que não consegue se defender.
*O nome foi mudado a pedido da entrevistada
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