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Mães apoiam filhos a mudarem o gênero na certidão: 'Acolhimento'

A administradora Maria Tereza Dourado com o filho trans, Lucas, de 15 anos: documentos dele foram modificados de acordo com o gênero com o qual se identifica - Zô Guimaraes/UOL
A administradora Maria Tereza Dourado com o filho trans, Lucas, de 15 anos: documentos dele foram modificados de acordo com o gênero com o qual se identifica Imagem: Zô Guimaraes/UOL

Luiza Souto

De Universa, do Rio de Janeiro

02/06/2022 04h00

"Não são todos os pais que acolhem e pulam na frente. Já chamei polícia para meu filho ser respeitado", diz a administradora Maria Tereza Dourado, de 56 anos, abraçada ao caçula Lucas, de 15. A dupla tinha ido ao centro do Rio em uma tarde chuvosa de quinta-feira para retificar a certidão de nascimento do adolescente, que se reconhece como um menino trans desde os 12. Ali acontecia um mutirão para troca de documentos, promovido pela Defensoria Pública.

Outro exemplo de amor —e respeito— incondicional pela família estava ali ao lado: a costureira Adriana Gomes da Silva, 44, perdeu a filha Samantha, de 18 anos, dias antes de conseguir concluir a mudança de seus documentos, e num movimento inédito, ao menos na Defensoria carioca, ela deu continuidade ao sonho da jovem e conseguiu o direito de trocar sua certidão de óbito.

Quem ajudou com a papelada foi a defensora Mirela Assad Gomes, coordenadora do Nudversis (Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos).

"Nunca fizemos nem temos notícia de uma situação como essa no país. E foi marcante, porque a Samantha já tinha feito o contato com a gente. Quando vi o sofrimento da mãe, não achei justo a filha ter sido sepultada com gênero masculino e ter sua existência apagada", afirma a defensora, emocionada.

Também foi a primeira vez que a defensora presenciou mãe e filho mudarem o documento juntos: a vendedora Chloe Santos, 39, levou o caçula Kayo, de 10, para que ele tivesse o direito de ser reconhecido como um menino. E a própria Chloe também modificou: ela se reconhece como uma pessoa não-binária —se identifica com o pronome feminino ou neutro. "Entendo que temos o direito de ser o que quisermos."

Em 4 anos, mais de 6 mil mudam o gênero na certidão

Foi em março de 2018 que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o direito das pessoas trans, independentemente de cirurgia de transgenitalização ou da realização de tratamentos hormonais, à substituição de nome e sexo diretamente no registro civil.

Com essa ação, os cartórios são obrigados a fazer a retificação, mas para isso exigem até 17 documentos diferentes entre eles certidão de nascimento atualizada, cópia do título de eleitor e comprovante de endereço.

A pedido de Universa, a Arpen/Brasil (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais) levantou que de 2018 até maio último 6.677 pessoas mudaram o nome de acordo com o gênero com o qual se reconhecem, nos cartórios de todo o país. Num comparativo entre 2018 e 2021, houve um aumento de 52% (de 619 para 938) no número de troca do nome masculino para o feminino, e 79% (de 483 para 864) do feminino para o masculino.

Para a ativista pelos direitos LGBTQIA+ Sara Wagner York, da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) as pessoas trans querem estar inseridas nas questões de políticas públicas básicas. "E a documentação nova permite coisas simples como entrar em um banheiro, porque comprova que temos o direito de estar ali", aponta ela, que é doutoranda em Educação pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Para agilizar esse processo de mudança de identidade, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro promove semanalmente um mutirão, por meio de um projeto chamado Justiça Itinerante.

Desde quando assumiu o núcleo, em agosto, a defensora Mirela Assad soma 283 requalificações com as ações, sendo 94 para o gênero não-binário, 81 para trans masculinos e 108 para trans femininas.

Universa acompanhou um deles e conversou com essas mães. Conheça as histórias.

Adriana Gomes da Silva conseguiu trocar certidão de nascimento e de óbito da filha Samantha - Zô Guimaraes/UOL - Zô Guimaraes/UOL
Adriana Gomes da Silva conseguiu trocar certidão de nascimento e de óbito da filha Samantha
Imagem: Zô Guimaraes/UOL

"Não poderia deixá-la ser apagada"

"A Samantha sempre foi hiperativa, e chegava nos lugares como um raio de sol, mas dos 10 para 11 anos começou a mudar as atitudes, a ficar mais agitada. Foi quando ela fez uma carta contando que se achava diferente e que gostava de meninos.

Tenho a cabeça aberta, muitos amigos trans e gays. Mas vi alguns deles serem mortos por preconceito. Tenho a lembrança de um amigo perder a vida a pauladas e fiquei com medo de a minha filha ser motivo de chacota. Sempre a apoiei, mas por causa da violência eu tentava mostrar a ela o quanto tinha gente preconceituosa e maldosa, e pedia para tomar cuidado com roupas e atitudes em excesso. Quando nos mudamos do Rio de Janeiro para Valença, no interior, sofremos perda de amigos trans.

Apesar do apoio, seu humor continuava se alternando. A rebeldia foi até os seus 14 anos. E ela era uma pessoa amável demais, aconselhava a todos.

Acho que o que contribuiu também para essas mudanças de humor foram os hormônios femininos, que ela começou a tomar sem eu saber. Levei a psicólogo, sempre ia na escola conversar, os irmãos dela também tentavam.

Adriana com a filha Samantha - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Adriana com a filha Samantha
Imagem: Arquivo pessoal

A Samantha nasceu mesmo aos 16 anos. Ela escolheu esse nome porque achava autêntico, como ela. E começou a correr atrás para mudar os documentos. Até um amigo apresentar o serviço da Defensoria Pública. Ela chegou a separar os documentos de que precisava. Mas 11 dias antes de sair a decisão, ela tirou a própria vida. E resolvi dar continuidade ao seu desejo.

Minha filha existiu, e agora está comprovado. Ela se foi, mas deixou um legado de esperança. Não poderia deixá-la ser apagada.

Agora vou seguir com o amor dos meus outros filhos, de 23, 19 e 12."

Adriana Gomes da Silva, costureira, de Vale Verde, em Valença, no Sul do Rio de Janeiro

Chloe se identifica como não-binária, e o filho, Kayo, como um menino trans - Zô Guimaraes/UOL - Zô Guimaraes/UOL
Chloe se identifica como não-binária, e o filho, Kayo, como um menino trans
Imagem: Zô Guimaraes/UOL

"Sensação de liberdade conquistarmos isso juntos"

"Nunca me vi totalmente como uma mulher, e entendo que temos o direito de ser o que quisermos. Por isso, escolhi me identificar como uma pessoa não-binária.

Meu filho também sempre foi diferente, e quando se identificava como menina não falava com ninguém. Mas esperei ele se encontrar. Ficou até indignado quando se descobriu um menino trans, porque achou que eu deveria saber desde o seu nascimento. Também reclamava do sexo atribuído a ele na certidão, e do nome escolhido.

Agora ele é outra pessoa, e sabe que o amo independentemente de qualquer coisa. E se mais tarde ele decidir voltar para o nome antigo, não tem problema.

Foi o Kayo que escolheu esse nome, e eu ainda sugeri Zyan. Quando pegou o documento, ficou nervoso, mas com a sensação de missão cumprida. Agora ele, que está no quarto ano, quer concluir os estudos e praticar esporte.

É uma sensação de liberdade conquistarmos isso juntos

E não estamos com medo de nada. Até porque, se não houver respeito, abro um boletim de ocorrência por constrangimento, como já precisei fazer uma vez, quando uma professora o chamou pelo nome de batismo.

No geral as pessoas próximas já nos respeitavam, e nos deram parabéns pela conquista. Até meu pai, que é professor de teologia, nos apoia. Ele também tem um filho trans. Tenho ainda uma filha de 18, que se diz bissexual, e um de 15, que é hétero."

Chloe Santos, 39, vendedora, de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense

Mara Tereza apoia troca na documentação do filho Lucas - Zô Guimaraes/UOL - Zô Guimaraes/UOL
Mara Tereza apoia troca na documentação do filho Lucas
Imagem: Zô Guimaraes/UOL

"Assim ele será respeitado"

"Meu filho se descobriu um menino trans aos 12 anos, mas antes de me contar ensaiou um suicídio. Achou que a gente não aceitaria. Sentamos eu, ele e meu outro filho, de 22 anos, falamos que o amamos muito e que o apoiamos. O pai é uma pessoa ausente.

Tentei dar leveza para a situação e até sugeri o nome. Às vezes, erro o pronome, mas me policio. O sentimento mais forte é o de medo e preocupação com o que ele vai passar.

Sei que não são todos os pais que acolhem e pulam na frente. Já chamei polícia em shopping para respeitarem ele

Ainda aos 12, o Lucas já queria começar a mudar tudo, tomar hormônios, mas combinamos que isso seria gradativamente. Não dá para fazer a toque de caixa. Não é como cortar o cabelo. Hoje ele tem atendimento psiquiátrico e psicológico. A hormonização deve acontecer em breve.

É tanta briga com a sociedade, com o outro que não respeita, que é importante ter essa documentação. E que coisa emocionante acompanhar isso. É um misto de acolhimento e felicidade, uma sensação de mais uma batalha vencida.

Agora tenho outra para ganhar. Estou numa luta com a escola onde ele estava cursando o primeiro ano do ensino médio até pouco tempo, e por causa da transfobia. Não respeitaram seu nome social, e ao decidir tirá-lo de lá, me cobraram multa para encerramento do contrato e ameaçaram acionar a Justiça para eu pagar o restante da mensalidade e o material escolar.

Depois de conseguir com que eles colocassem seu nome social na lista de chamada, como determina uma portaria do MEC (Ministério da Educação), voltaram com o de batismo agora em maio, alegando que foram obrigados após vistoria da secretaria escolar. Não quero dinheiro, mas ter o direito de não pagar, já que estou quebrando o contrato por causa deles.

Agora essa troca de documento nos deu um ânimo, porque assim ele será respeitado.

Maria Tereza Ferreira da Costa Dourado, 56, administradora, do Andaraí, Rio de Janeiro

Conseguir oficializar o que eu sempre senti é gratificante. Sinto que o sofrimento valeu a pena. É completamente reconfortante, ainda mais com o apoio da minha mãe em um processo tão importante

Lucas Dourado, 15 anos, estudante