Governo sugere que vítimas de estupro sejam investigadas após aborto legal
O Ministério da Saúde divulgou nesta semana um documento em que sugere que o governo federal investigue mulheres que fizeram aborto legal em decorrência de um estupro. Trata-se do "Guia de Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento", da Secretaria de Atenção Primária, chefiada pelo ginecologista Raphael Câmara.
"Não existe aborto 'legal' como é costumeiramente citado. Todo aborto é um crime", diz um trecho, na página 14. De acordo com o documento, mesmo o aborto em decorrência de estupro -que está previsto em lei- seria considerado crime e, portanto, deve ser investigado; se o Ministério não conseguir comprovar que houve um estupro, portanto, a vítima seria considerada criminosa e poderia responder por isso.
A antropóloga Debora Diniz, professora da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora nas áreas de gênero e direitos reprodutivos considera o texto e a atitude da secretária nesse caso um "instrumento de maus tratos às mulheres". "Não há nenhum justificativa plausível ou de cuidado por trás dessa decisão", afirma.
Para a ginecologista Juliana Giordano, co-fundadora da Rede Feminista de Ginecologistas, "essa é mais uma tentativa de restringir e desmontar o direito ao aborto no Brasil". "Esse médico [o Secretário de Atenção Primária à Saúde, Raphael Câmara] é um ativista contra o aborto, contra a assistência humanizada ao nascimento, sendo favorável inclusive a práticas de violência obstétrica", afirma.
Debora Diniz também chama a atenção para a violação da confidencialidade médica e revitimização das mulheres que passam por essa situação. "E mais: é uma transformação do lugar da vítima de uma das experiências mais brutais, que é o estupro, em suspeita. Ter que se explicar após isso nada mais é do que uma tortura a essas mulheres. É muito grave", diz.
Há cerca de um mês, a pasta comandada por Raphael Câmara também foi responsável por incentivar práticas de violência obstétrica, como a manobra de Kristeller, desaconselhado pela Organização Mundial da Saúde, ao lançar a nova caderneta da gestante.
Violação à ética e aos direitos humanos
Juliana Giordano explica que, hoje, por lei, basta a palavra da mulher para que ela possa fazer um aborto em decorrência de um estupro no sistema público de saúde —não cabe aos profissionais exigir um boletim de ocorrência ou qualquer prova de que o estupro ocorreu.
"Ao dizer que o aborto e o estupro precisam ser investigados, o Ministério da Saúde tenta não só criminalizar mulheres, como também os profissionais de saúde", critica. "Essas seriam violações expressas da ética profissional e também dos direitos humanos das mulheres".
Giordano conta que, mesmo nos casos em que o aborto é permitido no Brasil —em decorrência de estupro, quando oferece risco à vida da mulher ou quando o feto é anencéfalo— mulheres enfrentam uma "altíssima burocracia" para terem acesso ao procedimento.
"Muitas fazem uma verdadeira peregrinação, porque é raro conseguir esse atendimento rapidamente e no serviço de saúde mais próximo de casa".
Debora Diniz afirma que ações como essa são tentativas de se criar barreiras a um direito estabelecido por lei. "Não são coincidências. São ações que representam os ideais autoritários das pessoas envolvidas nessa decisão".
Outro lado
Procurado por Universa, o Ministério da Saúde não respondeu por que publicou afirmações em desacordo com a Constituição. A pasta informou apenas que "vai realizar audiência pública para ouvir a sociedade e especialistas sobre o conteúdo do Guia de Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento".
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