Morte matada, não morrida: livro critica visão de feminicídio na imprensa
Era a véspera do Natal de 2020 quando Paulo Arronenzi matou a facadas a ex-esposa, a juíza Viviane Vieira do Amaral, no Rio de Janeiro, em frente às três filhas pequenas do casal. A história repercutiu em manchetes jornalísticas e análises sobre crimes de feminicídio no Brasil. Mas outro crime semelhante, ocorrido na mesma noite na cidade de Mundo Novo, na Bahia, não ganhou a mesma visibilidade: Anselmo dos Santos Reis também matou a facadas a companheira, a trabalhadora doméstica Jenilde de Jesus Pinheiro. A morte dela só foi noticiada na mídia local.
Essa comparação abre o livro "Histórias de Morte Matada Contadas Feito Morte Morrida" (ed. Drops, 2021), escrito pelas jornalistas Vanessa Rodrigues e Niara de Oliveira. Elas analisam, ao longo de 317 páginas, como a imprensa brasileira retrata casos de feminicídio, quais são as histórias escolhidas para serem contadas, que termos e tom são usados. A obra foi lançada em dezembro de 2021 e está esgotada, mas a segunda edição deve ser lançada ainda neste mês.
Voltando aos crimes citados no começo desse texto, Vanessa analisa: "Dois homens assassinaram as companheiras na véspera de Natal, os dois com históricos de violência, mas uma era juíza e outra era trabalhadora doméstica. Apesar de os dados apontarem que a maioria dos casos de feminicídio acontecem contra mulheres negras e pobres, o que recebe mais cobertura é de mulheres brancas, na maioria mulheres jovens, de classe média alta. Além disso, tudo que acontece no Sul e no Sudeste recebe muita visibilidade, enquanto norte e nordeste não tem amplitude nacional", diz a autora em entrevista a Universa.
Além das mortes recentes de Viviane e Jenilde, a dupla de autoras relembra e discute outros episódios emblemáticos de feminicídio dos últimos 40 anos, como os de Eliza Samudio e Tatiane Spitzner. Também retoma casos como o de Sandra Gomide, assassinada pelo ex-namorado Pimenta Neves em 2000, e de Eloá Pimentel, também assassinada pelo ex-namorado, Lindemberg Fernandes Alves, em 2008.
"Ideia de 'crime passional' continua nas entrelinhas"
Em "Morte Matada", Vanessa e Niara constatam que, desde que a lei de feminicídio foi sancionada, em 2015, a imprensa usa o termo "feminicídio", indicando que trata-se de um caso de morte de mulher pela condição de gênero, mas "sempre de um jeito que as coloca como corresponsáveis pelo crime", fala Vanessa.
Para a dupla de autoras, há pelo menos dois fatores que merecem atenção: o uso da voz passiva —quando a notícia diz que "mulher foi morta" e não que "homem matou mulher"— e um discurso de crime passional, ou em defesa da honra, que, segundo elas, ainda permanece nas entrelinhas.
"Quando se opta por colocar a vítima como o sujeito da ação —'mulher é morta' ou 'mulher é assassinada'—, isso tira o foco da pessoa que cometeu o crime. De certa forma, sugere que a vítima também teve responsabilidade sobre aquele crime ou que teria provocado a situação que gerou sua morte", critica a jornalista.
Está escrito 'feminicídio', mas a gente termina de ler a matéria com a sensação de que a mulher fez alguma coisa para merecer aquilo.
A autora continua: "Ainda que os textos não usem mais termos como 'crime passional' e 'legítima defesa da honra', isso está no subtexto, nas entrelinhas. Falamos 'matou por ciúme', ou 'ainda não se sabe a motivação do crime', como se houvesse qualquer motivação que não seja o óbvio: machismo e misoginia, que fazem o homem acreditar que é dono do corpo e da vida daquela mulher".
Ao manter esse discurso, não se atinge o cerne do problema, diz Vanessa. "Cria uma narrativa de que mulheres estão morrendo, e não de que homens estão matando". No Brasil, quatro mulheres são vítimas de feminicídio todos os dias, e a maioria dos crimes é cometido por companheiros ou ex-companheiros das vítimas.
"E casos de feminicídio são julgados por júri popular, então essa narrativa importa muito, inclusive para punir quem mata as mulheres", conclui.
Livro começou em grupo de Facebook
Vanessa e Niara começaram a se debruçar sobre o assunto em meados de 2015, ano em que foi sancionada a lei do feminicídio pela então presidente Dilma Rousseff (PT). Na época, ao lado de outras jornalistas feministas, elas criaram um grupo de Facebook com o nome "Não Foi por Ciúme", justamente para analisar e debater a forma como a imprensa estava narrando a morte de mulheres.
"Todos os dias, a gente pegava um relato que saía na imprensa e discutia, analisava e debatia. A comunidade teve um boom com milhares de membros. Logo começamos a pensar em desenvolver um trabalho que saísse do Facebook e permitisse uma reflexão mais aprofundada", conta Vanessa.
Elas fizeram uma campanha de financiamento coletivo na internet para bancar a produção do livro e alcançaram 40% da meta —o que deu para cobrir os custos de produção, mas não pagar pelo trabalho da dupla, que passou todo o ano de 2021 em processo de pesquisa e escrita, tudo de forma remota, já que Vanessa mora em São Paulo e Niara, em Pelotas (RS).
Agora, enquanto aguardam a impressão da segunda edição de "Histórias de Morte Matada Contadas Feito Morte Morrida", as duas lançam também a newsletter "Todas Mortas?", em que vão analisar e discutir um caso de feminicídio por semana.
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