'Não foi lama. Eles foram triturados por um trator de minério de ferro'
Esta é a versão online da edição desta sexta-feira (17/06) da newsletter de Universa, que traz a entrevista de Helena Taliberti (mãe de Camila e Luiz, mortos na catástrofe de Brumadinho em 2019) na sexta edição do Universa Talks. Cadastre-se e receba o boletim diretamente no seu email. Assinantes UOL podem ter 10 newsletters exclusivas toda semana.
Assistir à entrevista de Helena Taliberti concedida à jornalista Juliana Linhares durante a sexta edição do Universa Talks é um convite à reflexão profunda. "Tem horas que penso no que aconteceu e vejo um monte de cacos espalhados no chão. Que pedaços vou catar?", indagou.
Helena é hoje presidente do Instituto Camila e Luiz Taliberti, que leva o nome de seus dois únicos filhos, mortos no deslizamento da barragem de Brumadinho, em janeiro de 2019.
A perda de um cônjuge faz nascer um viúvo. A dos pais, órfãos. Mas a perda dos filhos é inominável. É a inversão da tal ordem natural das coisas. Então imagine perder dois filhos, de uma vez, em uma catástrofe de dimensões épicas. Também sucumbiram ao deslizamento a sua nora, grávida do primeiro neto de Helena.
É impossível colocar-se no mesmo lugar de Helena, mas tenho certeza de que foi isso que todos os presentes ao evento (ou que assistiram à entrevista remotamente) tentavam fazer à medida que ouviam seu depoimento. Será que eu seria capaz de sobreviver à tamanha dor?
A seguir, a entrevista em versão editada.
Juliana Linhares: Eu queria pedir que você nos apresentasse seus filhos, Camila e Luiz.
Helena Taliberti: Camila era advogada especializada em direito digital. Tinha uma vida muito cheia de alegria, era muito passional em algumas situações. E ela preenchia a nossa vida: se tinha algum problema de manhã cedo, ela já me ligava, falava assim: "Mãe, o problema é esse". Pronto, o problema passava a ser meu e ela ia viver a vida dela. A Camila tinha um trabalho voluntário numa comunidade aqui em São Paulo, atendendo mulheres em situação de violência doméstica. E isso foi uma das coisas que nos impactou muito, porque só soubemos depois que ela faleceu. Muita coisa eu fiquei sabendo depois que eles morreram, porque vieram me contar como é que eles eram como amigos, como é que eles eram no trabalho.
E o Luiz?
Luiz era arquiteto e tinha uma preocupação enorme com os princípios da sustentabilidade nos seus projetos: iluminação, ventilação, uso de energia. Ele era muito o meu equilíbrio. Ele falava assim para mim: "Mãe, o que passou é passado, olha pra frente, vamos". Então às vezes eu falava, você não sabe, a Camila me ligou, falou assim. Ele dizia: "Mãe, passou, né, então vamos andando". Eles eram os meus dois pólos, os meus dois pilares
Helena, perder o que você perdeu mudou quem você é?
Mudou em vários sentidos. Nenhuma mãe está preparada para enterrar filhos, os dois únicos filhos que eu tive, e Luiz seria pai. Minha nora era uma menina exuberante e encantadora. Os três estavam felicíssimos. Quando você está numa fase linda da vida, como mãe, sogra, esperando ser avó... O rompimento de Brumadinho foi de uma brutalidade! Eles não foram levados pela lama, eles foram triturados por um trator de minério de ferro.
Como é que a gente pode se manter a mesma pessoa? Eu ainda estou me catando, porque tem horas que eu penso no que me aconteceu e viro um monte de cacos espalhados no chão. E falo assim, e agora, o que eu vou catar, que pedaço de mim que eu vou catar? Mudei muito, muito.
Depois que os seus filhos e seu neto morreram, você se descobriu com leucemia. Quais são as ajudas que você considera fundamentais para estar viva depois do que te aconteceu?
É uma rede enorme: terapia, psicoterapia, arteterapia, meditação, religião, médicos obviamente muito, muito queridos, que cuidam de mim, e principalmente, uma rede enorme de amigas e amigos da Camila e do Luiz. Eles estão próximos de mim diuturnamente em todos os momentos da minha vida desde o primeiro dia. Mandam mensagens de manhã, [para saber] se eu estou bem, seu eu acordei, se eu dormi, se eu quero fazer alguma coisa, se eu preciso de alguma coisa, tudo, durante todo esse tempo.
Houve momentos em que você pôde sentir de novo algum tipo de prazer?
Demorou bastante, mas eu consigo, porque eu acho que faz parte desse legado que eles deixaram. A Camila dizia que nós éramos 'belas, desbocadas e do bar'. Então como é que eu não vou para um bar?
O Luiz foi morar na Austrália e durante o período de despedida dos amigos, ele marcava com os amigos em algum bar e falava: "Mãe, hoje vai ser tal dia em tal bar. Você não quer ir? [Eu respondia]: "Tá bom". Eu ia e me divertia.
Hoje eu e o meu marido saímos com amigos, recebemos pessoas em casa quando podemos. Agora, sem a pandemia, talvez possamos mais. É gostoso conversar sobre eles, a memória deles é gostosa, não me traz tristeza. O que me traz dor é lembrar a forma como eles morreram, isso sim é dor.
O que os seus amigos mais próximos e parentes fizeram para te ajudar a lidar com as burocracias da morte e o que a gente pode ter como lição para ajudar nossos amigos, nossos parentes, que eventualmente passem por isso?
Eu e marido estávamos em Brumadinho quando os corpos foram achados. Meu filho foi achado antes da Camila. Eu fui chamada para reconhecer o corpo, e meu marido foi comigo. E a menina que me atendeu, perguntou o que eu era do Luiz, porque o meu nome na minha carteira de identidade estava diferente da certidão de nascimento dele, porque eu tinha já me separado do pai dele.
Aí eu desmontei. Falei: "Como assim, alguém vem ao IML reconhecer um corpo e você me pergunta quem eu sou? Meu marido nessa hora foi crucial para eu não surtar, aliás eu praticamente surtei.
Quando eu fui reconhecer o [corpo] da Camila, meu marido não pôde estar comigo, estava o namorado da Camila na época. Eu surtei do mesmo jeito porque fizeram a mesma pergunta. Foi nessa hora que eu falei, sozinha eu não vou dar conta de fazer nada.
Quem te ajudou?
Meu marido me ajudou, fez tudo praticamente. Os amigos do Luiz e da Fernanda na Austrália foram verdadeiros anjos na nossa vida. O pessoal do escritório dele [também], porque tinha toda uma questão de previdência na Austrália.
Você parece mesmo amparada, mas não resta dúvida de que passa por dias e por noites que a gente não pode imaginar. Depois do que aconteceu, você pensou também que queria embora junto com eles para não sentir o que você sente?
Eu não pensei, porque eu acho que eu comecei a perceber que a morte deles tinha que ter uma razão de ser. Não é à toa que eu fui jogada naquele cenário, naquela imagem da lama descendo e carregando tudo. Não foi à toa que eu fui jogada lá. Alguma coisa tinha que acontecer, tem que acontecer para mim.
Eles estavam lá passeando, eles eram turistas, eles não trabalhavam na empresa, não trabalhavam em terceirizadas, não eram da comunidade de Brumadinho. Como assim? O que eles estavam fazendo lá? Uma hora eu tenho que entender o que eu estou fazendo aqui nessa vida e por que eu estou passando por isso.
Você se comunica com eles de alguma maneira, com Luiz e Camila?
Conexão entre mãe e filhos não termina nunca. Tem horas que eu estou me vestindo e falo: "Ixi, essa roupa aqui a Camila não ia gostar".
Esta frase do Luiz me vem na cabeça toda hora: "Mãe, o que passou é passado." Essa é a minha conexão com eles. Às vezes eu penso em fazer uma meditação e eu nem preciso, eu já sinto que o amparo vem. Eles estão em outra dimensão, mas estão por perto.
O que você faz nos dias mais difíceis Helena? Você se deixa ficar dormindo até mais tarde, você liga para amigos, como você se salva dos dias mais difíceis?
Eu fico na cama se eu quiser ficar na cama, eu choro se eu quiser chorar. Às vezes o choro vem durante a noite. Eu acho que os meus amigos e as minhas amigas até sabem que isso acontece, mas eu não ligo para eles porque é um momento meu com os meus filhos. Eu também não estou chorando sozinha porque eles estão ali.
Eu acho que você vai viver com a ausência, com a saudade, mas ao mesmo tempo vai viver com a presença [deles] quando aparecem no sonho, quando você se lembra deles com a memória.
Você me disse que por esses dias o seu marido te deu um ímã de geladeira em que estava escrito: "O melhor ainda está por vir". Queria que você nos contasse qual foi o seu sentimento quando você ganhou esse ímã?
No começo, falei, o que será que ele quer dizer com isso? Mas eu acho que é uma esperança, uma esperança de que a morte deles não tenha sido em vão.
Tem uma música do Ivan Lins de que eu gosto muito, com uma frase assim: "para que nossa esperança seja mais que vingança, seja sempre um caminho que se deixa de herança". Eu acho que essa frase é isso para mim, o melhor está por vir, vamos atrás.
O instituto que tem o nome dos seus filhos talvez seja o caminho para que essa esperança se transforme em práticas que melhorem a vida das pessoas. Você pode nos contar um pouco do que já fizeram nesses poucos anos?
Nós criamos o Instituto Camila e Luiz Taliberti por uma iniciativa dos amigos e das amigas deles. Os nossos objetivos são o empoderamento de grupos vulneráveis, principalmente mulheres, e a proteção do meio ambiente. Temos que conscientizar a sociedade de que não temos planeta B. Eu acho muito importante que a gente saiba que nada acontece por acaso e nem em vão, tudo tem uma razão.
Temos quatro programas principais: educação socioambiental, empoderamento feminino, justiça climática e memória da tragédia de Brumadinho, que não pode ser esquecida; nem [a tragédia de] Mariana. E nós sabemos que o Brasil corre o risco de muitos outros desastres e crimes como esses. A nossa esperança é que haja justiça, porque nós não podemos permanecer na impunidade.
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